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segunda-feira, 27 de abril de 2009

A Prática do 'Sexting' e um Precedente Perigoso

OPINIÃO / ARTIGO

A prática do 'sexting' e um precedente perigoso

POSTADO ÀS 11:26 EM 27 DE ABRIL DE 2009

Por Ruy José Guerra Barretto de Queiroz

O recente hábito de adolescentes de tirar fotos nus ou seminus e enviá-las a amigos através do telefone celular tem alarmado a sociedade americana, desde pais e educadores até a própria justiça. O maior receio é de que essas fotos acabem nas mãos de predadores sexuais. A prática é conhecida como “sexting”: uma combinação (ou seja, uma palavra-valise) de “sex” (sexo) com “texting” (envio de mensagem de texto), a prática foi primeiro reportada em 2005 na revista do jornal britânico The Sunday Telegraph. 

Começou como uma prática de envio de mensagens SMS (serviço de mensagens curtas de texto enviadas por celular) de natureza sexual, e, com o avanço tecnológico, passou a envolver também o envio de fotografias e vídeo, daí a explicação para o termo, pois ‘texting’ em inglês se refere a mensagens enviadas como texto.  Hoje a prática já é reportada em diversos países, como Austrália, Nova Zelândia, Grã-Bretanha, e, é claro, Estados Unidos.  Uma pesquisa de 2008 realizada pela “National Campaign to Prevent Teen and Unplanned Pregnancy” e o portal CosmoGirl.com (“Sex and Tech Survey”) já apontava para uma tendência de prática generalizada do sexting e outros conteúdos online sedutores sendo facilmente compartilhada entre adolescentes. 

Na ocasião, cerca de 22% de garotas adolescentes (entre 13 e 19 anos) – e 11% de meninas entre 13 e 16 anos – disseram que já haviam enviado eletronicamente ou disponibilizado online, imagens de si próprias nuas ou seminuas. Um terço dos rapazes adolescentes e 25% de garotas disseram que a eles (ou elas) já vieram mostrar imagens privadas de nus ou seminus. Conforme o estudo, mensagens sexualmente sugestivas (texto, email, e mensagem instantânea) foram até mais comuns que imagens, com 39% dos adolescentes tendo enviado ou disponibilizado online mensagens dessa natureza, enquanto que praticamente metade dos adolescentes já teria alguma vez recebido uma mensagem desse tipo. 

Em Janeiro último, uma outra pesquisa realizada pela empresa Teenage Research Unlimited, de Chicago (“Is Your Child ‘Texting’?”, Keagan Harsha, WCAX-TV, 03/01/09), com 1200 adolescentes americanos, mostrou que um em cada cinco já tinham enviado por dispositivos móveis fotos de nu explícito de si mesmo.

A prática pode vir a ser um caso de polícia quando as fotos envolvidas forem de menores, pois dessa forma a veiculação (e a posse) das imagens pode ser interpretada como prática de pornografia infantil. Esse é o caso de um grupo de adolescentes de uma cidade americana de apenas 1900 habitantes chamada Wyoming County (Pensilvânia), que estão sendo ameaçadas pelo procurador do distrito, George Skumanick, de sofrerem um processo judicial sério por ter aparecido em fotos armazenadas em celulares apreendidos pela justiça, mesmo não as tendo enviado. 

Uma das garotas desse grupo, de apenas 11 anos de idade, aparece em traje de banho.  Alguns especialistas estão preocupados com a atitude radical do Sr. Skumanick no sentido de expandir a definição de ‘sexting’ a ponto de ter aberto um precedente perigoso.

Conforme matéria recente de Dionne Searcey no portal do Wall Street Journal (“A Lawyer, Some Teens and a Fight Over 'Sexting' ”, 21/04/09), muitos promotores dizem que as leis deveriam ser usadas para proteger as crianças de adultos, e não de outras crianças. Em alguns casos, como o de Wyoming County, adolescentes podem acabar fichados como infratores sexuais se forem condenados por porte de pornografia infantil. Há os que dizem que se as acusações formais forem feitas, elas deveriam ser limitadas às crianças que de fato distribuíram as fotos.

No mês passado a “American Civil Liberties Union of Pennsylvania” (ACLU-PA), juntamente com os pais das adolescentes citadas por Skumanick, entrou com um processo contra o procurador por “ameaçar as três garotas em idade escolar com acusações de pornografia infantil sobre fotos digitais nas quais aparecem topless ou de roupas íntimas.” A ACLU-PA alega que o procurador violou os direitos de liberdade de expressão das três adolescentes, e que o Sr. Skumanick estaria interferindo nos direitos dos pais de educá-las conforme suas próprias convicções.

Segundo o portal da ACLU-PA, o procurador exigiu que, para evitar as acusações, as garotas sejam postas em período probatório, participem de um programa de cinco semanas de reeducação, e sejam sujeitas a testes aleatórios de consumo de drogas. De forma a esclarecer o caso, a ACLU-PA declara que a acusação se refere a duas fotos: uma delas mostra duas das garotas sem blusa mas com sutiã, enquanto a outra traz a terceira garota do lado de fora de um box de chuveiro com uma toalha enrolada na altura do tórax imediatamente abaixo dos seios à mostra. 

Nenhuma das duas fotos representa atividade sexual ou revela qualquer coisa abaixo da cintura. Em sua acusação, o procurador afirmou que as garotas foram cúmplices na produção de pornografia infantile pois se permitiram fotografar. Não há ameaça de acusação aos indivíduos que distribuíram as fotos. 

Afirmando que Skumanick não deveria ter ameaçado as garotas com acusações graves, a menos que elas concordassem em ser colocadas em período probatório e em participar de um programa de aconselhamento, o diretor jurídico da ACLU-PA, Witold Walczak, declarou que "crianças deveriam ser ensinadas que compartilhar imagens digitais de si próprias em posições embaraçosas ou comprometedoras podem ter más conseqüências, mas os promotores não deveriam estar usando artilharia pesada ... para ensiná-las essa lição." Uma liminar foi concedida à ACLU-PA, e foi marcada uma audiência para o início de Junho.

De sua parte, o Sr. Skumanick, de 47 anos, e há 20 como procurador do distrito, revela que ficou profundamente perturbado com o caso, pois lembrou um incidente em Ohio no qual a mãe de uma adolescente atribuiu ao sexting o suicídio da filha: a garota, Jessica Logan, tinha enviado fotos de si mesma ao namorado, e mais tarde se enforcou, após ser assediada moralmente por colegas de escola quando o namorado supostamente enviou as imagens a seus colegas.

Não obstante a nefasta lembrança do caso Jessica Logan e o fato de que o ato de “sexting” ser no mínimo estúpido, a tática do procurador Skumanick parece ter ido além do razoável e invadido o terreno da violação de direitos fundamentais. Embora entre as leis de proteção à criança figurem as normas contra a obscenidade, sabe-se que nem toda foto de nu deve ser classificada como obscena.

A julgar pela velocidade com que se processa a migração da convivência cibernética para os dispositivos móveis, a tendência é que seja cada vez maior a chance de ocorrer casos semelhantes. Segundo um relatório recente da Nielsen Online, o acesso a portais de redes sociais através de dispositivos móveis quase que triplicou em 2008, em grande parte devido à crescente penetração do chamado “smartphone” e às maiores velocidades de transmissão de dados e voz nas redes de última geração. 

A tendência é que a busca por conteúdo na internet a partir de dispositivos móveis seja cada vez maior. O fato concreto é que qualquer discussão sobre o comportamento da audiência de internautas estaria incompleta sem o entendimento da dinâmica da telefonia móvel. Nos EUA, por exemplo, atualmente cerca de 50 milhões de assinantes de celulares acessam a Web através de seus aparelhos diariamente. Também nos EUA, a audiência da internet móvel cresceu 74% entre Fevereiro de 2007 e Fevereiro de 2009.

Diante de tal realidade, e da participação cada vez maior nesse novo espaço de convivência (o ciberespaço) das faixas etárias mais baixas, faz-se necessário empreender programas e campanhas educativas no seio da juventude sobre as regras, as maravilhas, e os perigos dessa nova convivência.

PS: Ruy é professor associado do Centro de Informática da UFPE e escreve para o Blog sempre às segundas.

Blog de Jamildo (Jornal do Commercio Online, Recife), 27/04/2009, 11:26hs,

 http://jc3.uol.com.br/blogs/blogjamildo/canais/artigos/2009/04/27/a_pratica_do_sexting_e_um_precedente_perigoso_45319.php

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Centro de estudos de internet e sociedade

ARTIGO / OPINIÃO

Centro de estudos de internet e sociedade

POSTADO ÀS 08:46 EM 20 DE ABRIL DE 2009

Por Ruy José Guerra Barretto de Queiroz

A internet aparece em destaque em praticamente todos os estudos sobre as tendências atuais do mercado de consumo. Pesquisas recentes mostram que, apesar da crise financeira que vive o mundo, a receita proveniente de anúncios na internet nos EUA totalizaram US$6,1 bilhões no 4º trimestre de 2008, um aumento de 4,5% em relação ao 3º trimestre de 2008 (US$5,8 bi), e um aumento de 2,6% em relação ao 4º trimestre de 2007 (US$5,9 bi). Em um ano a venda de anúncios na internet trouxe uma receita de US$23,4 bilhões, isto é, 10,6% a mais que os US$21,2 bilhões de 2007. Por outro lado, como resultado da desaceleração da economia, as receitas com anúncios em geral (incluindo os anúncios pela internet) caíram 2,6% em 2008.

O grande fenômeno do mercado consumidor global no ano de 2008 foram as chamadas “redes sociais” (MySpace, Facebook, Orkut). Estima-se que dois-terços da população da internet mundial visitam uma rede social ou portal de blog, e o setor agora representa quase 10% de todo o tempo de internet. A categoria das “comunidades de membros inscritos” ultrapassou E-mail pessoal para se tornar o 4º setor mais popular online no mundo, depois de busca, portais e aplicações de software de PC. Segundo pesquisas recentes da Nielsen Online, 50% da população online na Suíca e na Alemanha utilizam redes sociais, e o percentual de aumento do tempo de internet tomado pelas redes sociais foram os maiores nesses dois países (207% e 140%, respectivamente). 

O Brasil aparece como o maior entusiasta das redes: 80% da população online faz uso dessas redes, o que se traduz em 23,1% do tempo de internet no Brasil é tomado pelo uso de redes sociais. Com o nome de seu criador, funcionário da Google, o turco Orkut Büyükkökten, a rede Orkut apareceu em 2004 e os estudantes das principais cidades brasileiras começaram a distribuir convites por brincadeira para ver se eles conseguiriam fazer do Orkut um portal mais popular no Brasil que nos EUA. 

Orkut acabou se tornando não apenas a rede social mais popular no Brasil, mas também o 3º portal mais popular. Metade da população de internet brasileira visitou o Orkut em Setembro/2005 e o índice agora é de 70% – o maior alcance doméstico de qualquer rede social em qualquer parte do mundo. Embora a rede Orkut seja a mais popular no país (51% dos seus membros são brasileiros), a Facebook cresce a passos largos (em um ano, aumentou em 566% o tempo de internet tomado por essa rede no mundo todo), e já se tornou a maior rede do mundo: atingiu 200 milhões de membros na 2ª semana de abril/2009. Por sua vez, a MySpace é a segunda, e ainda a maior nos EUA (ao que tudo indica, por pouco tempo).

Crianças também desfrutam desse novo espaço de convivência. Em matéria recente  no New York Times (“Software That Guards Virtual Playgrounds”, 18/04/09), Leslie Berlin dá uma idéia: “Mundos virtuais para crianças e adolescentes — portais como Neopets, Club Penguin e Habbo — são um grande negócio. Nesses portais, crianças criam um avatar e, com ele, exploram um universo imaginário. Ali eles podem jogar vídeo-games, fazer “chat” (troca de mensagens instantâneas) e decorar quartos ou outros espaços virtuais.” 

Até o final do ano serão 70 milhões de contas únicas (o dobro do ano passado) em mundos virtuais voltados para crianças menores de 16 anos, conforme a “K Zero”, uma empresa de consultoria. A “Virtual Worlds Management”, uma empresa de mídia e de eventos, estima que existem hoje mais de 200 mundos virtuais “já disponíveis, planejados ou em desenvolvimento” voltados especificamente para o jovem. E à medida que a quantidade desses mundos virtuais cresce, cresce também a demanda por software sofisticado e pessoal de monitoração que possam realizar a tarefa de monitores virtuais no “parque de diversões virtual”.

Além da frieza dos números do mercado consumidor e dos negócios, é importante constatar que a internet se consolida como um novo espaço de convivência humana. O crescimento em popularidade das redes sociais – e a audiência resultante – é somente metade da estória. O crescimento assustador na quantidade de tempo que as pessoas estão passando nesses portais está mudando a maneira como as pessoas passam o tempo online e tem ramificações no que diz respeito a como as pessoas se comportam, compartilham e interagem nas suas vidas cotidianas normais. 

O fato é que hoje em dia é difícil encontrar um tema mais fundamental no mundo contemporâneo do que a migração do contato físico, face-a-face, para o mundo virtual das telecomunicações. Como se trata de um novo espaço de convivência, é natural que surjam questões relevantes ao cidadão contemporâneo que demandam respostas não apenas tecnológicas, mas políticas, jurídicas, sociológicas, econômicas, pedagógicas: Como encontrar equilíbrio entre propriedade intelectual e livre expressão? Que intervenções educacionais devem ser realizadas com crianças e adolescentes (“nativos digitais”) e pais (“imigrantes digitais”) para a promoção da boa convivência nesse espaço? 

Os valores morais da vida real se transferem para o mundo virtual? O que constitui um compartilhamento ilegal de arquivos? O que pode ser caracterizado como "uso razoável" de uma obra protegida por direitos autorais? Quando é que uma música, imagem, ou filme pertence ao "domínio público"? Qual o impacto que a tecnologia tem tido (ou deverá ter) na proteção ao consumidor e à sua privacidade? Onde está o ponto de equilíbrio entre anonimidade, liberdade de expressão, e responsabilidade? Qual o impacto que a lei de proteção à propriedade intelectual digital tem (ou deve ter) sobre a inovação tecnológica? 

O que acontece (ou deveria acontecer) num processo jurídico envolvendo interesses e valores de grande monta no qual as questões sejam de natureza essencialmente tecnológica? Como classificar uma determinada distribuição de mensagens não-solicitadas como criminosa? Quem, como, e em que grau deve-se responsabilizar pelo vazamento de informações sensíveis? Como deve ser avaliada uma denúncia de quebra da neutralidade da rede por parte de um provedor de acesso? Como funciona a economia nesse novo espaço de convivência? Quais os mecanismos mais bem sucedidos de promoção da inovação nesse novo cenário? Que tipo de técnicas de medida podem ajudar a que tipo de empreendimento? 

Quais são as lições mais relevantes do fenômeno da bolha da internet do início do novo milênio? O que é que faz do Vale do Silício (onde estão 75% dos casos de sucesso do chamado "capital de aventura") um eixo de inovação tecnológica, um poderoso ecossistema de idéias, empreendedorismo, e investimento em tecnologias transformadoras, e qual o papel da Stanford University nisso tudo?

A busca pelo conhecimento científico apropriado para o enfrentamento de questões como essas faz parte de um projeto de criação, no âmbito da UFPE, de um Centro de Estudos de Internet e Sociedade à luz de exemplos bem sucedidos como Harvard e Stanford. O objetivo é explorar e entender o ciberespaço; estudar seu desenvolvimento e dinâmica, suas normas e padrões; e avaliar a necessidade ou a falta de leis e sanções para esse novo espaço de convivência. 

Agindo como um forum interdisciplinar, o Centro deverá buscar reunir estudiosos, acadêmicos, legisladores, estudantes, programadores, pesquisadores em segurança da informação, e cientistas para estudar a interação entre as novas tecnologias e as ciências sociais (Direito, Economia, Sociologia, Psicologia, Pedagogia) e examinar de que forma a sinergia entre essas disciplinas pode promover ou prejudicar bens públicos como a liberdade de expressão, a privacidade do indivíduo, os comuns públicos, a diversidade, e a investigação científica. 

A intenção é fomentar ações que aperfeiçoem tanto as tecnologias quanto as leis e as regras de convivência social, incentivando os tomadores de decisão a projetarem tanto as leis como as tecnologias como veículos do aprimoramento dos mais altos valores democráticos.

PS: Ruy é professor associado do Centro de Informática da UFPE e escreve para o Blog sempre às segundas.

Blog de Jamildo (Jornal do Commercio Online, Recife), 20/04/2009,

http://jc3.uol.com.br/blogs/blogjamildo/canais/artigos/2009/04/20/centro_de_estudos_de_internet_e_sociedade_44917.php

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Propriedade intelectual digital e o conceito de uso razoável

ARTIGO / OPINIÃO

Propriedade intelectual digital e o conceito de uso razoável

POSTADO ÀS 09:54 EM 13 DE ABRIL DE 2009

Por Ruy José Guerra Barretto de Queiroz

Um tanto insana a guerra contra a pirataria de conteúdo digital. Fácil de copiar, e igualmente fácil de repassar, o conteúdo digital está alimentando uma disputa de gato e rato que parece não ter fim. E tudo isso numa época em que não só a pirataria na internet como também a pirataria “offline” (i.e., na rua, no mundo real) também campeia. Numa audiência no congresso americano realizado na última segunda-feira (06/04/09), legisladores e executivos da indústria de conteúdo (gravadoras, estúdios cinematográficos, etc.) quase em uníssono descreveram uma situação que se deteriora a olhos vistos, e na qual US$20 bilhões anuais em filmes, músicas e outros produtos do entretenimento protegidos por direitos autorais estão sendo perdidos para as redes mundiais de pirataria que são toleradas ou encorajadas por países como China, Rússia, India e, surpreendentemente, Canadá. (No Canadá está em vigor uma norma que diz que grandes carregamentos de filmes e músicas ilegais são permitidos passar daquele país para os EUA.) 

Richard Cook, o chairman da Walt Disney Studios, descreveu uma intrincada seqüência de eventos em que seu sucesso de animação “Wall-E” foi duplicado por uma camcorder num cinema em Kiev (Ucrânia) em Julho passado, e em menos de um mês a cópia já havia sido reproduzida para venda ilegal em mais de uma dúzia de países. A “International Federation of Phonographic Industry”, um grupo baseado em Londres que representa a indústria global de música, declarou recentemente que 95% de todas as músicas baixadas na internet em 2008 foram através de downloads ilegais. Em escala global, downloads ilegais de música custam US$12,8 bilhões em vendas, conforme o grupo.

Até mesmo o desenvolvimento de ferramentas para evitar que um internauta tenha seu endereço de internet rastreado tem sido motivado por essa guerra cibernética. A ferramenta denominada IPREDator é um novo serviço de rede privada virtual (VPN) criada por aqueles que estão por trás do serviço “The Pirate Bay”: com ela é possível permanecer anônimo na rede. Seu tráfego de internet será criptografado e protegido – até mais que uma VPN típica oferece. Dessa forma, a polícia não vai poder apanhar um internauta que baixe conteúdo digital de forma ilegal. O pior é que, como se pode imaginar, uma ferramenta como essa pode ser usada para outros fins bem mais perigosos à sociedade. 

Conforme relata Sarah Perez em um artigo no portal ReadWriteWeb.com (“IPREDator, the Terrifyingly Awesome Privacy Tool Prepares to Launch”, 07/04/09), há anos o portal “The Pirate Bay” tem sido um dos principais eixos de compartilhamento ilegal de arquivos protegidos por direitos autorais, para a tristeza e o descontentamento das gravadoras, estúdios de cinema, e outros produtores de conteúdo que vêem o portal como uma das razões pelas quais seus negócios não estão dando dinheiro como costumavam dar. Independentemente de ser ou não ser verdade, é mais provável que as indústrias de conteúdo não tenham conseguido se adaptar de modo suficientemente rápido à entrada em cena da internet, uma força global que não deixa ilesos os modelos tradicionais de negócio e, em alguns casos, simplesmente os leva à destruição completa. Uma série de razões fazem da “The Pirate Bay” tão popular. O portal não apenas é fácil de usar, mas também provê conteúdo digital para se baixar quando não é possível localizá-lo legalmente. 

Por exemplo, no intervalo entre o momento em que um filme deixa de ser exibido nos cinemas e o seu lançamento em DVD, não há como assistir ao filme. E aí entra a “The Pirate Bay”. Até quando apareceram portais como o iTunes, os proprietários de conteúdo digital ainda criavam dificuldade de acesso a seus produtos, tornando o “The Pirate Bay” o lugar onde encontrar o que não se poderia acessar através dos canais “legítimos”. Para o cidadão americano, hoje esse ainda é o caso, pois alguns shows não estão disponíveis no portal iTunes. Além do mais, pasme-se, às vezes o conteúdo pirateado é até de melhor qualidade que o conteúdo legitimamente baixado. Fundado em 2003, o “The Pirate Bay” rapidamente se tornou “o portal” onde ir para encontrar qualquer arquivo na rede, muitos dos quais são protegidos por direitos autorais. Ainda assim, os operadores do portal afirmam que o que eles estão fazendo é perfeitamente legal. 

Mesmo sendo réu num processo por violação de direitos autorais na Suécia (país que abriga seus servidores), cujo veredito final é esperado em 17 de Abril próximo, um porta-voz do Pirate Bay, Peter Sunde Kolmisoppi, declarou que 80% dos “downloads” do portal são conteúdos que podem ser compartilhados legalmente online. O argumento para a defesa da legalidade do que faz o “The Pirate Bay” é parecido com uma velha expressão: “as armas não matam pessoas, são pessoas que matam outras pessoas”. Somente porque o “The Pirate Bay” provê a infraestrutura que aponta para onde os arquivos estão armazenados, seria o portal o culpado quando é utilizado para apontar para conteúdo ilegal?

A pirataria custa à indústria do filme e da músca na França pelo menos 1 bilhão de euros, o equivalente a um ano de vendas perdidas, conforme dados da indústria francesa. Em reação a pressões dessa indústria, o parlamento francês esteve prestes a aprovar uma lei para a criação do primeiro sistema de vigilância contra a pirataria na internet: provedores de serviço de internet seriam forçados a desconectar clientes acusados de fazer download ilegal de conteúdo digital. O projeto de lei, chamado de “Création et Internet” e conhecido informalmente como a diretiva dos “três golpes”, obteve algumas vitórias preliminares no parlamento e tinha tudo para ser aprovada em ambas as casas, pois tinha o apoio do partido do Presidente Nicolas Sarkozy. 

Porém nessa 5ª feira (09/04/09), o projeto foi rejeitado por 21-15 num “show de mãos”, conforme matéria de Erif Pfanner no portal do NY Times (“France Rejects Plan to Curb Internet Piracy”), significando que a maioria dos membros da casa legislativa de 577-membros decidiram não comparecer— uma indicação do quão impopular era a proposta entre os eleitores franceses, por quem o compartilhamento não-autorizado de arquivos de músicas e filmes é largamente utilizado. “É uma vitória para os cidadãos e as liberdades civis sobre os interesses corporativos,” disse Jeremie Zimmermann, diretor do “La Quadrature du Net”, um grupo de advocacia da internet em Paris.

Caso aprovada, a lei francesa daria poderes às associações de gravadoras e estúdios para contratar empresas para analisar os registros de “download” de usuários suspeitos com vistas à detecção de pirataria, e daí reportar violações à nova agência que supervisiona a proteção ao direito autoral. A agência estaria autorizada a rastrear “downloads” ilegais até os indivíduos utilizando o endereço IP (“Internet Protocol”, identificador associado ao usuário pelo provedor de serviço). Na primeira violação a agência enviaria um e-mail de advertência. Caso o usuário fizesse um novo download ilegal dentro de três meses, uma segunda advertência seria enviada por correio certificado (com “aviso de recebimento”). No caso de uma terceira violação dentro de um ano, o provedor de serviço teria que interromper o serviço. 

Um dos diversos aspectos controvertidos do projeto dessa “lei dos três golpes” é por o ônus da prova de inocência no acusado, que somente seria capaz de protestar após ter sido desconectado pelo provedor. Por essa e por outras, ativistas de direitos civis na internet chamaram a atenção para o fato de que não havia provisões adequadas para se contestar uma ação e que a lei daria aos representantes da indústria o poder de vigiar a internet. Outros questionaram se a lei penalizaria injustamente aqueles cujas contas de acesso sem fio são utilizadas ilegalmente por terceiros. Ao que parece, o projeto de lei de alguma forma se antecipava a esse caso tornando uma infração para cidadãos que se descuidem em “tornar segura” sua rede sem fio por meio de tecnologia de filtragem aprovada. 

Apesar de rejeitado, o projeto, pelo menos em suas linhas gerais, não está necessariamente morto. Um assessor do Presidente Sarkozy, Roger Karoutchi, disse aos repórteres que uma versão modificada do projeto estaria sendo proposta dentro de algumas semanas. E a França não está sozinha nisso. Porém, é fato que enquanto sistemas de vigilância contra a pirataria têm sido discutidos em diversos países, o projeto francês tentou ir mais longe que qualquer outro país. Por exempo, em 01/04/09 uma lei na Suécia chamada de “Diretiva para a Garantia dos Direitos de Propriedade Intelectual” entrou em vigor, permitindo que grupos representantes da indústria processem mais facilmente a pirataria do direito autoral. Porém nada como a proposta francesa.

O conceito de direito autoral que prevalece em meio a essa guerra cibernética ainda é o mesmo desde que Thomas Edison inventou o gramofone e o kinetoscópio. Contudo, como diz Lawrence Lessig em seu novo livro (“Remix: Making Art and Culture Thrive in the Hybrid Economy”, Penguin Press, Outubro 2008), se a lei de propriedade intelectual não for reformada, toda uma geração será criminalizada: ironicamente, a quebra das leis do direito autoral pela juventude por meio de compartilhamento de arquivos, ao mesmo tempo em que a criminaliza, a ajuda a se tornar mais criativa e colaborativa. O fato concreto é que a juventude não parece disposta a desistir de baixar música, filme, etc.: trata-se de uma geração que nasceu e cresceu numa cultura em que a remixagem é a “arte essencial”. 

As propostas de Lessig para reforma do direito autoral são convincentes, pois convocam a repensar, e não abandonar, o conceito de propriedade intelectual em si. O argumento é baseado no fato de que a economia “híbrida”, que combina a “comercial” (por exemplo, Amazon.com) e a “compartilhadora” (por exemplo, Wikipedia.org), pode criar valores para ambos os lados. Lessig aponta para vários exemplos interessantes de como e por que a tecnologia digital e a lei do direito autoral podem promover a arte profissional e a amadora. Portanto, reformar a lei do direito autoral é a única maneira de salvá-la: "Nós, como sociedade, não vamos conseguir matar essa nova forma de criatividade. Só vamos conseguir criminalizá-la. Não vamos conseguir impedir nossa juventude de usar as tecnologias que a entregamos para remixar a cultura em torno dela. Somente vamos conseguir empurrá-la para o submundo."

Um dos conceitos mais importantes em toda discussão sobre reforma na lei de propriedade intelectual é o conceito de “fair use” (termo em inglês que pode ser traduzido como “uso razoável”). Conforme a Wikipedia, “uso razoável é uma doutrina na lei do direito autoral dos Estados Unidos que permite o uso limitado de material protegido por direito autoral sem a exigência de permissão dos detentores dos direitos, tais como o uso acadêmico ou para efeito de resenha. A doutrina provê para a citação legal, não-licenciada ou incorporação de material protegido por direito autoral no trabalho de outrem sob um teste de balanceamento de quatro-fatores. O termo ‘fair use’ tem origem nos Estados Unidos, mas foi adicionado à lei do direito autoral de Israel e da Coréia do Sul; um princípio similar, ‘fair dealing’, existe em algumas jurisdições de lei comum. Jurisdições de lei civil têm outras limitações e exceções ao direito autoral”. 

Citando o “Copyright Act of 1976”, o verbete delineia os chamados quatro-fatores de balanceamento: “Ao determinar se o uso feito de uma obra em qualquer caso específico é um uso razoável os fatores a serem considerados deverão incluir: (1) o propósito e o caráter do uso, incluindo se tal uso é de uma natureza comercial ou é para propósitos educacionais sem fins lucrativos; (2) a natureza da obra protegida por direitos autorais; (3) a quantidade e a substancialidade da porção usada na relação com a obra protegida por direitos autorais como um todo; e (4) o efeito do uso sobre o mercado potencial ou valor da obra protegida. O fato de que uma obra está não-publicada não deverá por si só impedir que se encontre um uso razoável se tal achado for feito sob consideração de todos os fatores acima.” Não obstante a ênfase em questões relativas ao direito autoral, o fato é que há uma relação muito estreita entre “uso razoável” (isto é, o direito de usar uma obra protegida por direitos autorais para dizer ou criar algo novo) e a própria noção de liberdade de expressão e os valores da livre expressão.

Como declara em seu portal a Electronic Frontier Foundation (EFF), por exemplo, “os serviços de hospedagem de video online como YouTube estão dando origem a uma nova era de livre expressão online. Ao servir de repositório para ‘conteúdo gerado pelo usuário’ (em inglês, ‘user-generated content’) na internet, esses serviços permitem que os criadores atinjam uma audiência global sem ter que depender de intermediários tradicionais como redes de TV e estúdios de cinema. O resultado tem sido uma explosão de criatividade por pessoas comuns, que têm abraçado entusiasticamente as oportunidades criadas  por essas novas tecnologias para se expressarem de uma variedade incrível de formas. O coração de grande parte dessa criatividade é o uso razoável (...). Criadores naturalmente citam e reaproveitam as mídias que fazem nossa cultura, dando origem a obras que comentam, parodiam, satirizam, criticam, e homenageiam obras expressivas que vieram antes. Essas formas de livre expressão estão entre aquelas protegidas pela doutrina do uso razoável.”

Em sua resenha do livro de Lessig, L. Gordon Crovitz lembra como está difícil se travar uma conversação calma sobre a indústria da mídia hoje em dia. “As forças poderosamente perturbadoras da tecnologia estão refazendo a paisagem, produzindo enormes vencedores e outrora-poderosos perdedores, com impacto total na cultura, para o bem ou para o mal, a ser determinado. Considere a maior empresa de mídia no mundo—Google—não produz conteúdo; as receitas da Google vêm de anúncios, e mesmo assim, num sinal dos tempos, sua sede não está na Madison Avenue (avenida arterial de Nova Iorque) mas no Vale do Silício. Entrementes, a indústria da música gravada tem estado processando seus fãs por fazer cópias digitais de suas músicas, mesmo que a própria indústria ainda tenha que encontrar um modelo de negócio que funcione. E aí existe a indústria do filme, que tem medo de ser a próxima à medida que se torna amplamente possível fazer download de fluxos massivos de vídeo. 

Estações de TV, por sua vez, não têm certeza se a web é amiga ou inimiga. Com toda essa destruição no ar (tomando emprestado uma frase do grande economista Joseph Schumpeter), é compreensível que executivos de empresas da mídia tradicional tenham tido pouco tempo para uma crítica aguçada do que eles consideram como seu mais fundamental direito de propriedade—seu direito, aliás, ao conteúdo intelectual de sua música, filmes, e vídeo. Até esse mesmo direito, protegido sob leis tradicionais do direito autoral, está sob ameaça.” Resta pouca dúvida de que é preciso usar mais massa cinzenta que músculo para se vencer mais esse desafio com o qual se depara a sociedade civilizada.

PS: Ruy é professor associado do Centro de Informática da UFPE e escreve para o Blog sempre às segundas.

Blog de Jamildo (Jornal do Commercio Online, Recife), 13/04/09:54hs,

http://jc3.uol.com.br/blogs/blogjamildo/canais/artigos/2009/04/13/propriedade_intelectual_digital_e_o_conceito_de_uso_razoavel_44478.php


segunda-feira, 6 de abril de 2009

Cidadão versus Grande Corporação: O Caso Comcast e Topolski

Cidadão versus Grande Corporação: O Caso Comcast e Topolski

Seg, 06/04/09
por Canal GNT |
categoria P2P

comcast_1.jpgUm tanto quanto emblemático o caso do cidadão comum norte-americano que se saiu vitorioso numa disputa sobre questões legais e tecnológicas contra uma megacorporação: Robb Topolski, especialista em tecnologias de redes de computadores tomou por capricho mostrar ao mundo que a Comcast estava agindo de modo reprovável e contra os seus próprios clientes, e após cerca de um ano de disputas envolvendo duas audiências públicas, uma em Harvard e outra em Stanford, finalmente conseguiu seu intento.
Ano de 2008. O cenário é a internet, e os personagens principais são a Comcast, grande empresa de TV a cabo e maior provedora residencial de serviços de internet dos Estados Unidos, e seus clientes que compartilham arquivos, entre os quais está Robb Topolski. Os principais delitos: a violação dos princípios de neutralidade da rede, a falta de transparência, a invasão de privacidade, e a perjúria.

Conforme a Wikipedia, uma rede neutra é aquela que é livre de restrições sobre os tipos de equipamento que nela pode ser ligado, e os modos de comunicação permitidos; que não restringe conteúdo, portais ou plataformas; e onde a comunicação não é degradada sem motivos razoáveis por outros fluxos de comunicação.

Segundo Lawrence Lessig, a internet é um motor de crescimento econômico e inovação devido ao princípio simples da neutralidade da rede, que assegura aos inovadores que sua próxima grande idéia estará disponível aos consumidores, independente do que dela pensam os donos da rede. A esses donos da rede, tipicamente os chamados provedores de serviços, se não for exigido o respeito aos princípios de neutralidade, no momento em que eles também participam do mercado de fornecimento de conteúdo, a tentação de apelar a práticas anti-competição bate logo à sua porta.

Numa palestra ao encontro sobre a internet e os princípios de neutralidade da rede intitulado “The Policy Implications of End-to-End”  (em 01/12/2000), organizado em Stanford pelo próprio Lessig, Gerald Faulhaber, Professor Emérito de Negócios e Políticas Públicas da Escola Wharton de Economia da Universidade da Pennsylvania  declarava: “Adam Smith, que todos chamamos de maior defensor do livre mercado, foi o primeiro a chamar a atenção para o fato de que produtores nunca se encontram, mas que eles conspiram contra o público.  Produtores sempre estiveram tentando descobrir como monopolizar e senão obter mais lucros do público. E foi só porque houve um grande número deles competindo que eles não conseguiram fazer isso. Mas, não obstante, eles continuam tentando. (…) Mas os produtores vão sempre buscar maneiras de fugir à competição (…) seja através de marketing, de prender o consumidor à sua marca, com política predatória de preço, com efeitos em rede, etc . E a tecnologia é simplesmente um conjunto a mais de variáveis estratégicas em sua aljava. Será que vamos estruturar nossa tecnologia de modo que ela essencialmente nos permita construir barreiras à entrada? Onde se encontra o argumento fim-a-fim (“end-to-end”) em tudo isso? Se pudermos traduzir isso em termos de economia global, aquele fim-a-fim em engenharia é o equivalente do mercado competitivo perfeito que os economistas conhecem e adoram. É a coisa que torna tudo isso transparente, é aberto, qualquer um pode fazer qualquer coisa.”

comcast_2.jpgA premonição de Faulhaber não demorou a se concretizar. Cerca de 6 anos depois da palestra, a Comcast, também fornecedora de serviços de conteúdo de vídeo e de música, mas atuando na qualidade de provedora de serviços de acesso à internet, e sob o pretexto de administração da qualidade de serviço na sua rede, passou a interferir na comunicação entre usuários que desejavam compartilhar músicas e filmes através do serviço “peer-to-peer” (P2P) oferecido pela empresa BitTorrent, usando protocolo de mesmo nome e que se tornou quase sinônimo de “compartilhamento ilegal de conteúdo protegido por direitos autorais”. E fez de tudo para esconder tais práticas de tentar fugir à competição.

Há registros de que, lá pelos idos do mês de Março de 2007, a Comcast recomendou a seus funcionários a não comentar quando clientes perguntassem sobre notícias então recentemente veiculadas na Associated Press de que ela havia contratado um serviço de sabotagem de BitTorrent a uma empresa chamada Sandvine, ou mesmo discutir que exista um relacionamento entre as duas empresas.  (A propósito, já se sabia à época que a Sandvine tem na sua carteira de clientes os governos de diversos países que praticam a censura a conteúdos da internet.) Não adiantou: o portal da Reuters acabou trazendo matéria em 27/04/07 relatando que a revista financeira da Barron havia noticiado que a Comcast figurava na carteira de clientes da Sandvine. Em diversos fóruns de usuários do serviço “eMule” já havia registro em meados de 2006 de suspeitas de que a Comcast estaria bloqueando o protocolo BitTorrent. Vários registros davam conta de que a Comcast estaria bloqueando “uploads” solicitados por conexões de eMule/eDonkey/Kad.  Um dos registros, datado de 16/08/06, diz: “recomendo fortemente procurar outro provedor de serviço a quem quer que deseje utilizar o serviço eMule”. Em 19/10/2007 a Electronic Frontier Foundation (EFF), grande baluarte dos direitos civis na internet, já registrava em seu portal (e posteriormente num relatório intitulado “Packet Forgery By ISPs: A Report On The Comcast Affair”, por Peter Eckersley, Fred von Lohmann e Seth Schoen) a notícia de que havia confirmado através de testes as alegações da Associated Press de que a Comcast estava forjando pacotes de TCP RST que causa a interrupção de conexões. Trata-se de uma técnica utilizada pelos serviços de censura de internet na China: esses pacotes têm o efeito de levar ambos os lados da conexão a acreditar, erroneamente, que o outro não mais deseja continuar a comunicação. Para embasar uma ação judicial, seria preciso reunir evidências tecnicamente inequívocas de que tal prática estaria ocorrendo.

comcast_3.jpgEis que surge o cidadão Robb Topolski, especialista em tecnologias de redes de computadores e blogueiro (“Robb Topolski’s Journal – Every  Day is a Miracle – Every Meal is a Feast”), que, usando tracejamento de pacotes e comparações fim-a-fim entre conexões Comcast e não-Comcast, concluiu que “TCP Reset flags” estavam sendo usadas para derrubar conexões P2P quando o par que fazia o “upload” estava na rede da Comcast. Na audiência pública em Stanford organizada pela Federal Communications Commission, Topolski declara: “Não conseguí fazer upload de certos conteúdos legais e históricos da época de Tin-Pan Alley e Barbershop Quartet  – 24 horas por dia, durante meses.” (…) “Investigando essa tecnologia ainda mais, descobrí que era universalmente considerada inaceitável – é o mesmo método usado por ‘The Great Firewall of China’.” (O termo é na verdade um jogo de palavras: “the great wall of China” se refere à grande muralha, porém “firewall” é um tipo de programa de computador usado para bloquear a entrada de conteúdos indesejados, tais como vírus de computador.) De posse dos subsídios reunidos por Topolski, duas organizações não-governamentais de defesa dos direitos civis na internet, a “Free Press” e a “Public Knowledge”, entraram com uma interpelação junto à Federal Communications Commission (FCC), que ao acatar, deu início a um processo cujo desenrolar levou à condenação pública da Comcast e ao inevitável constrangimento de ver desmentidas todas as alegações aparentemente razoáveis de ter agido exclusivamente em nome das “melhores práticas” de administração da qualidade de serviço.

Duas audiências públicas foram organizadas pela FCC: uma em 25/02/2008 em Harvard, com a presença de representante da Comcast (David Cohen, Vice Presidente Executivo), e outra em 17/04/2008 em Stanford, esta última sem a presença de representante da Comcast. A ausência da empresa na segunda audiência pode ter relação com o constrangimento público por que passou a Comcast ao admitir que contratou (e pagou) transeuntes para ocupar lugares na fila de entrada para a primeira audiência pública. A justificativa foi de que seus funcionários teriam interesse em participar mas não teriam condições de passar o dia esperando na fila. Justificativa razoável ou não, o certo é que no dia seguinte saiu uma matéria no portal Portfolio.com (“Grassroots Support? Or Astroturf?”, por Sam Gustin, 26/02/08) com fotos de alguns desses supostos contratados em pleno sono durante a sessão no auditório da Faculdade de Direito de Harvard onde foi realizada a audiência.

O desfecho parecia inevitável. Em 01/08/08 a FCC decidiu, por uma votação apertada (3-2), punir a Comcast por sua “interferência subreptícia” com uploads BitTorrent, e emitiu uma ordem declarando que a Comcast tinha violado os princípios de neutralidade estabelecidos na “Declaração de Políticas de Internet” da FCC de 2005, e que portanto deveria parar com tais práticas e dar mais transparência aos seus métodos de administração da rede.

comcast_4.jpgNo documento oficial enviado à Comcast, Kevin Martin (Chairman da FCC), se pergunta “seria correto se a empresa de correios abrisse sua correspondência, decidisse  que não queria entregá-la, e escondesse esse fato enviando-a de volta a você com o carimbo de ‘endereço desconhecido – retorne ao remetente’? Ou seria correto, quando alguém lhe envia uma carta de primeira-classe, se a empresa de correios a abrisse, decidisse que devido ao fato de que o caminhão de entrega às vezes está lotado, as cartas para você poderiam esperar, e então escondesse que leu suas cartas e as retardou?”

O veredito de Martin foi implacável: “Diferente do que disse a Comcast, ela bloqueou usuários que estavam usando muito pouco de largura de banda simplesmente porque estavam usando uma aplicação preterida. Diferente do que disse a Comcast, ela não afetou outros usuários que estavam também usando uma quantidade extraordinária de largura de banda mesmo durante períodos de congestão de rede desde que ele/ela não estivesse usando uma aplicação preterida. Diferente do que disse a Comcast, ela retardou e bloqueou usuários que usavam uma aplicação preterida mesmo quando não havia congestão na rede. Diferente do que disse a Comcast, a atividade se estendeu a regiões muito maiores que a área onde ela diz que ocorreu congestão de rede.”
À medida que o caso se desenrolava, a EFF cuidava de disponibilizar gratuitamente a todos os cidadãos da rede uma página intitulada “Teste seu provedor”: “No mínimo, consumidores merecem uma descrição completa do que eles estão obtendo quando eles compram ‘acesso ilimitado à Internet’ de um provedor. Somente se eles souberem o que está acontecendo e quem deve ser responsabilizado por interferência deliberada podem os consumidores fazer escolhas informadas sobre quais provedores eles preferem (desde que eles tenham escolha entre provedores residencias de banda-larga) ou que contra-medidas eles poderiam empregar. Os responsáveis pelas políticas públicas também precisam entender o que está realmente sendo feito pelos provedores de modo a desmontar a retórica evasiva e ambígüa empregada por alguns provedores para descrever suas atividades de interferência.”

Além da conscientização, a EFF disponibilizou a ferramenta de teste de rede denominada “Switzerland Network Testing Tool”: “Seu provedor está interferindo com suas conexões BitTorrent? Cortando suas chamadas VOIP?  Minando os princípios de neutralidade da rede? Para responder a essas questões, usuários de Internet precisam de ferramentas para testar suas conexões de Internet e coletar evidência sobre práticas de interferência do provedor.”

Enfim, de posse de ferramentas apropriadas (Switzerland não é a única: Gemini, Glasnost, ICSI IDS, NDT, NNMA, pcapdiff, WebTripwires também fazem seu papel), cabe ao cidadão tomar o exemplo de Topolski como referência importante, e contribuir para uma internet livre de interferências indevidas.

Em apoio à decisão da FCC, Topolski enviou carta oficial àquela agência reguladora no mesmo dia da divulgação oficial dizendo: “A FCC tomou uma decisão sábia hoje, decisão esta que envia uma mensagem a provedores de serviços de internet de que a Agência está vigilante, que ela entende que a internet envolve um novo conjunto de desafios técnicos, e que a Agência está disposta a agir de uma maneira que reforce o sucesso da internet como um todo”.

Resta-nos tirar o chapéu para esse cidadão.

comcast.jpgRuy de Queiroz é PhD em Computação pelo Imperial College, Universidade de Londres. Atualmente trabalha na elaboração de um projeto de criação de um Centro de Estudos de Internet e Sociedade no âmbito da UFPE.


Blog da Série "Selva Digital", Canal GNT (Globosat), 06/04/2009, http://colunas.gnt.com.br/selvadigital/2009/04/06/cidadao-versus-grande-corporacao-o-caso-comcast-e-topolski/

Anonimidade, Liberdade de Expressão, e Responsabilidade

OPINIÃO / ARTIGO

Anonimidade, liberdade de expressão, e responsabilidade

POSTADO ÀS 08:32 EM 06 DE ABRIL DE 2009

Por Ruy José Guerra Barretto de Queiroz

Liberdade de expressão e anonimidade são prerrogativas por demais preciosas e interligadas de forma um tanto delicada, a ponto de que qualquer desequilíbrio, por menor que seja, suscita grande polêmica, sobretudo quando o cenário é a internet. E à medida que a convivência no espaço virtual se intensifica, aumentam as chances de ocorrer um desequiíbrio. Especialmente notório foi o caso da garota Megan Taylor Meier (06/11/1992–17/10/2006) do estado americano de Missouri que cometeu suicídio aos 13 anos e 11 meses de idade, ao que tudo indica provocado pelo ato de “cyber-bullying” (assédio moral pela internet) através da rede social MySpace, realizado por uma mulher adulta se fazendo passar por um rapaz de 16 anos de idade: Lori Drew, mãe de uma ex-colega de Megan, admitiu ter criado uma conta na MySpace sob o pseudônimo de “Josh Evans”. 

Testemunhas confirmaram que Drew e uma empregada sua de 18 anos de idade agiram premeditadamente ao planejar usar as mensagens eletrônicas trocadas entre a garota Megan e o suposto "Josh" para obter informações sobre ela e com isso lhe causar constrangimento e humilhação, em retaliação por uma suposta fofoca que ela teria feito em detrimento da filha de Drew. Um júri federal acabou indiciando Lori Drew em 15/05/2008, com base em três delitos de acesso não autorizado a computadores para obter informações com o propósito de infligir aflição emocional, e um delito de conspiração criminal. Entretanto, em 26/11/2008 Drew foi considerada culpada em três delitos menores (reduzidos de delitos graves para delitos leves pelo júri).

Por outro lado, em 2007 a Yahoo! foi denunciada pela Organização Mundial pelos Direitos Humanos por ter compartilhado informações sobre seus usuários com o governo chinês: tais informações teriam levado à prisão de escritores e dissidentes políticos. Conta-se que um jornalista citado no caso foi rastreado e condenado a 10 anos de prisão por subversão depois que a Yahoo! entregou seu e-mail e endereço IP (de internet) a membros do governo chinês. Nesse caso, o direito à anonimidade para o pleno exercício da liberdade de expressão foi duramente atingido, e, em função de todo o constrangimento que isso causou no público americano, a empresa chegou a ser convocada pelo congresso americano para audiências públicas sobre esse e outros casos semelhantes.

É natural que se trave uma intensa batalha entre os que são a favor e os que são contra a eliminação da anonimidade na internet. De um lado, acredita-se que as pessoas deveriam ter convicção suficiente no que acreditam, de modo que não sentiriam necessidade de se esconder atrás da anonimidade. Do outro lado, o argumento é de que a anonimidade é vital para a proteção da liberdade de expressão. Ao que tudo indica, aqui também o equilíbrio parece ser o melhor caminho. Conforme pronunciamento da Suprema Corte americana, anonimidade pode ser essencial à liberdade de expressão: “Panfletos anônimos, folhetos, brochuras e até mesmo livros têm desempenhado um importante papel no progresso da humanidade. 

Grupos e seitas perseguidos de tempos em tempos através da história têm sido capazes de criticar práticas e leis opressoras anonimamente ou não.” Nas palavras do “Justice” John Paul Stevens (membro da Suprema Corte americana) num caso célebre de 1995, “anonimidade é um escudo contra a tirania da maioria”, ao mesmo tempo reconhecendo que "O direito a permanecer anônimo pode ser abusado quando protege conduta fraudulenta. Mas o discurso politico por sua natureza terá em algum momento conseqüências impalatáveis, e, em geral, nossa sociedade aporta maior peso ao valor da liberdade de expressão que aos perigos de seu mau uso."

Em seu artigo recente “Putting Your Best Faces Forward” (29/12/2009) no portal do Wall Street Journal, Julia Angwin chama a atenção para o fato de que a anonimidade na internet também tem o papel de proteger a criatividade e a liberdade de se assumir diferentes personas conforme os diferentes aspectos de nossa personalidade. Conforme Angwin, o mundo online – onde estamos passando um período cada vez maior do nosso tempo – é intolerante ao nosso mal da múltipla personalidade (e quem não sofre disso, atire a primeira pedra: no trabalho, na academia de ginástica, na faculdade, nos projetamos diferentemente). Na rede, nos deparamos com a escolha extrema entre fazer de contas que somos uma estrela de rock em portais como MySpace, ou construir uma única personalidade que seja adequada a todas as nossas audiências em portais como Facebook, LinkedIn ou Twitter. 

Aí estaria um dos paradoxos da era da internet: a liberdade da internet é também restritiva, pois a imagem que projetamos de nós mesmos – aquilo que os acadêmicos chamam de “identidade unitária” – se torna nossa imagem definidora e não nos permite que nos recriemos ou que projetemos imagens diferentes a audiências diferentes. A rede MySpace foi fundada em parte como uma reação contra as restrições da identidade unitária impostas num portal chamado Friendster que existia naquela época. Era 2003, e a Friendster havia trabalhado no melhoramento do conceito de se construir páginas da internet pessoais permitindo que as pessoas criassem uma ligação de suas páginas pessoais às páginas de seus amigos. Na linguagem da sociologia, a inovação da Friendster levou a uma melhor “sinalização” online. O relacionamento entre os sinais que enviamos sobre nós mesmos e nossos próprios “eu”s é tratado por uma ciência social chamada "teoria da sinalização." 

A Friendster permitia que as pessoas agrupassem seus amigos como parte do sinal, levando a sinais melhores e mais ricos. Mas a Friendster cometeu um grande erro, conforme Angwin: desencorajou seus membros a se fazerem passar por alguém que não eram. E isso significou: nada de “Fakesters”. E, paradoxalmente, a abordagem "nada de Fakesters" violou um dos princípios básicos da internet – justamente a anonimidade – tão bem representado por um cartoon de Peter Steiner no New Yorker (1993) mostrando um cachorro diante de uma tela de computador e com a legenda "Na internet, ninguém sabe que você é um cachorro." Para muitos, o poder da anonimidade não é um luxo mas uma necessidade, a própria essência da liberdade. Angwin conclui dizendo que, ao que tudo indica, a MySpace estava certa ao sonhar em permitir a todos a liberdade de acesso a sua estrela de rock interior, mas que agora, conforme a predominância da abordagem “nada de Fakesters”, mais parece um sonho de adolescente.

Independentemente de que lado se está, o fato é que há ferramentas ao auxílio da anonimização da navegação na rede, um dos belos exemplos sendo o Tor (“The Onion Router”) que é um software gratuito para roteamento em forma de cebola (“onion routing”): originalmente patrocinado pelo US Naval Research Laboratory (Laboratório de Pesquisa da Marinha Americana), o Tor se tornou em 2004 um projeto da Electronic Frontier Foundation (EFF, uma ONG de defesa dos direitos civis na internet), e a EFF deu apoio financeiro até Novembro de 2005. Hoje em dia o software Tor é desenvolvido pelo “Tor Project”, que desde Dezembro de 2006 tem status de organização educativa e de pesquisa sem fins lucrativos.

Seja pela disponibilidade de ferramentas como o Tor, seja por desinformação, é comum as pessoas pensarem que quando se está anônimo ou pseudônimo na internet, isso significa que ninguém pode descobrir quem eles(as) são. Em geral, trata-se de uma suposição falsa. Em seu livro "The Future of Reputation: Gossip, Rumor and Privacy on the Internet,", Daniel J. Solove (Yale Univ Press, Outubro 2008), professor associado da Faculdade de Direito da George Washington University analisa a diferença entre anonimidade e rastreabilidade. Anonimidade significa que o nome da pessoa não está publicamente associado ao que ele/ela escreve. Mas essa pessoa pode ainda estar facilmente rastreável.  Um empregador pode descobrir a identidade de um blogueiro anônimo combinando os detalhes do que a pessoa fornece a pessoas verdadeiras (e não anônimas) nas publicações do blog. 

A maioria das pessoas não são particularmente adeptas de estar anônimo, e por isso deixam toda sorte de dicas sobre sua verdadeira identidade. Além disso, algumas pessoas podem inclusive escrever em seus blogs a partir de seus computadores do trabalho, e nesse caso os empregadores podem facilmente rastrear as publicações até seu autor. Mas se um empregado é esperto e não deixa rastro, um empregador ainda pode encontrar sua identidade localizando o endereço de IP e fazer uma intimação para o provedor de serviços de internet daquela pessoa. Normalmente, os provedores de serviços têm que manter registro sobre quais endereços de IP estão associados com quais dos seus clientes. Entretanto, segundo a lei americana, para que o empregador emita tal intimação é preciso que haja um processo judicial apoiado na alegação do cometimento de algum ilícito (difamação, vazamento de segredos industriais, etc.) e somente então a intimação pode ser emitida. 

As cortes avaliam a intimação e confrontam os direitos de liberdade de expressão do acusado garantidos pela “Primeira Emenda” à Constituição (“First Amendment”, garantindo liberdade de religião, de expressão, e de imprensa, proposta em 29/09/1789 e em vigor a partir de 15/12/1791) com a necessidade do empregador de identificar o acusado para prosseguir no processo judicial. Se o processo for viável, então, tipicamente, a intimação recebe a autorização para ser emitida. Caso seja frívolo, a intimação é negada.

Em nome de uma saudável discussão sobre o equilíbrio entre anonimidade, liberdade de expressão, e responsabilidade, Sarah Hinchliff publicou um artigo no seu blog no Center for Internet and Society de Stanford (“Accountability and Anonymity: Rethinking the Value of Anonymous Speech”, 27/03/2009) dando conta de um caso recente: um “amicus curiae” (“amigo da corte”, instituto processual de origem estadunidense, em que terceiros são chamados a participar de uma ação com o fim de auxiliar a tomada de decisão pelo juiz ou corte) submetido pela Cyberlaw Clinic da Harvard University à Corte de Apelações de Illinois em apoio a pesadas salvaguardas procedimentais para proteger a anonimidade em processos de difamação. 

O instituto surgiu de um esforço colaborativo de um número de organizações, incluindo o “Citizen Media Law Project” do Berkman Center for Internet and Society de Harvard, a Gannett Corporation, e o Reporters Committee for Freedom of the Press. Embora se declarando de acordo com a premissa fundamental de que reclamantes deveriam fazer mais do que simplesmente submeter uma intimação para compelir os acusados a revelarem a identidade dos declarantes online, em sua opinião, a posição tomada pelo amicus foi longe demais.

Conforme Hinchliff, o argumento cria um desequilíbrio entre casos de difamação envolvendo declarantes identificados e declarantes anônimos advogando um padrão significativamente mais alto de privilégios para os reclamantes que são difamados por declarantes anônimos. Especificamente, os “amigos” advogam um padrão em quatro-níveis para se determinar se o reclamante tem direito a compelir a revelação quanto à identidade do declarante: (1) o reclamante deve tentar notificar o acusado e lhe dar uma oportunidade de responder antes de seguir em frente com o litígio; (2) o reclamante deve fazer uma reivindicação suficiente para sobreviver uma moção de desconsideração; (3) o reclamante deve apresentar evidência prima facie para cada elemento de sua reivindicação de difamação; e (4) a corte deve determinar que os princípios de eqüidade pesem em favor da revelação. 

Em outras palavras, um reclamante efetivamente deve apresentar evidência suficiente para sobreviver uma moção para julgamento sumário sem o benefício de depor o acusado ou mesmo saber quem o acusado é. Além do mais, mesmo se esse padrão de evidências for atingido, a corte pode ainda decidir que os direitos de Primeira Emenda do declarante anônimo suplantam o direito do reclamante a compelir a revelação da identidade do declarante. Os “amici” justificam esse padrão rigoroso argumentando que ele evita que reclamantes entrem com processos de difamação frívolos  somente para revelar a identidade de um declarante anônimo: “Sem o véu protetor da anonimidade, o receio da retaliação e o constrangimento, assim como a desilusão sobre preconceito, podem muito bem desincentivar muitos declarantes a se engajarem em discurso público". 

Segundo Hinchliff, trata-se certamente de uma preocupação importante, mas a ameaça de processos frívolos concebidos para aplacar o discurso não chega a ser única para casos de difamação envolvendo declarantes anônimos. “Ao dar proteção a declarantes anônimos, o padrão aumentado reflete um julgamento implícito de que o discurso anônimo deveria ser mais altamente valorizado que o discurso não-anônimo. E que isso também produz o efeito perverso de incentivar todo declarante a retirar seu nome de relatórios, comentários, e opiniões online”, continua Hinchliff.

No final das contas, Hinchliff insiste que não é que não devamos tentar evitar processos concebidos somente com o objetivo de sufocar a liberdade de expressão. O importante é que ao se conceber soluções para o problema dos casos de difamação, devemos tomar muito cuidado para não supervalorizar o discurso anônimo. Enquanto que certamente há circunstâncias nas quais anonimidade é necessária, essas situações são e devem mesmo ser limitadas. Faz sentido quando jornalistas são fortemente desencorajados a citar fontes anônimas – isso evita a responsabilidade. 

À medida que caminhamos num ambiente onde mais e mais pessoas têm a capacidade de comunicar suas idéias e opiniões, é fundamental que incentivemos a responsabilidade no mercado das idéias. Certamente que incentivar anonimidade não é o melhor caminho para se fazer isso. Há que se buscar o equilíbrio entre anonimidade, liberdade de expressão, e responsabilidade.

PS: Ruy é professor associado do Centro de Informática da UFPE e escreve para o Blog de Jamildo sempre às segundas.

Blog de Jamildo, Jornal do Commercio Online (Recife), 06/04/2009, 08:32hs, 

http://jc3.uol.com.br/blogs/blogjamildo/canais/artigos/2009/04/06/anonimidade_liberdade_de_expressao_e_responsabilidade_44107.php