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segunda-feira, 26 de abril de 2010

A Filtragem de Conteúdo no Ciberespaço


A Filtragem de Conteúdo no Ciberespaço

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Espaço livre, democrático e aberto por concepção, a internet vive um momento delicado. A filtragem de acesso tem se consolidado como ferramenta padrão na luta contra conteúdo indesejado, desde material relacionado a grupos terroristas, passando por pornografia infantil e chegando até a espionagem de estado com motivação política ou de soberania nacional.
Como seria de se esperar, há muita controvérsia quanto à legitimidade e à eficácia da filtragem, o que tem provocado acalorados embates entre, de um lado políticos e reguladores, e do outro lado os tecnologistas e os defensores dos direitos civis no ciberespaço, sobretudo a liberdade de expressão e a privacidade. Até bem pouco tempo fazendo parte do universo dos regimes repressores, a filtragem de acesso passou a ser praticada também em países ocidentais representantes e representativos da democracia contemporânea, vários deles dando guarida a “listas negras” pouco transparentes de endereços e termos, outros incorporando legislação que praticamente legitima algum tipo de filtragem.
Declarando-se disposta a combater a pornografia infantil, a Austrália anunciou recentemente planos no mínimo controversos de implantação, nos provedores de serviços de internet, de um esquema de filtragem por camadas. Esse esquema incluiria o uso de um filtro obrigatório para bloquear conteúdo ilegal caracterizado por meio de “listas negras”, além de um filtro “opt-out” direcionado a famílias que selecionariam quais restrições fariam ao acesso a partir de suas residências. Nas listas negras não apenas pornografia infantil, mas também em princípio qualquer conteúdo relacionado a instrução em crime, uso de droga, ou eutanásia, entre outros tópicos.  A responsabilidade pela confecção das listas negras e pela administração do esquema de filtragem ficaria sob a Australian Communications and Media Authority, um órgão do governo australiano criado em 2005 com o propósito de servir como agência reguladora da mídia nacional.
Em artigo publicado recentemente no portal em inglês do Al-Jazeera (“Do web filters hinder free speech?”, 14/04/10), Jillian York e Robert Faris alertam para o fato de que embora o esquema de filtragem australiano, caso venha a ser implantado, se constituiria no mais abrangente do mundo ocidental, ele não seria o único. Países como Noruega, Finlândia, Reino Unido, Dinamarca, e Holanda, todos exercem bloqueio a certos sítios considerados como hospedeiros de pornografia infantil. Segundo os especialistas, no entanto, não apenas o custo e o alcance desses filtros mas também seu real impacto na luta contra a pornografia infantil seriam mínimos, pois o material continua sendo acessível utilizando os chamados “softwares de circunvenção”. York & Faris também chamam à atenção para o fato de que outros países europeus já implementaram sistemas de filtragem ainda mais intrusivos. Em fevereiro o parlamento francês aprovou uma lei que inclui, entre outras coisas, um requisito de que provedores de serviços censurem sítios numa lista negra do governo. Mais recentemente, o parlamento britânico deu seu aval a um projeto de lei (“Digital Economy Bill”) que permitiria às cortes daquele país bloquearem completamente sítios da internet assim como desconectarem usuários com base na violação de direitos autorais. Tudo isso, na prática, significa concretamente filtragem de conteúdo.
A primeira geração de controles de acesso à internet consistia essencialmente de construir firewalls em certos pontos-chave da internet para impedir acesso a determinado conteúdo indesejável, tendo como seu representante mais famoso o chamado “Great Firewall” da China (em analogia à Grande Muralha). Hoje, no entanto, as novas ferramentas que têm surgido vão além de uma mera negação da informação, pois objetivam normalizar o controle da internet, incluem vírus direcionados e o emprego estrategicamente planejado de ataques de negação distribuída de serviço (DDoS), monitoração em pontos-chave da infraestrutura da rede, avisos de retirada de conteúdo, políticas rigorosas de termos de uso, além de estratégias nacionais de amoldagem da informação. A nova geração dos controles de acesso é analisada em livro prestes a ser lançado pela The MIT Press (“Access Controlled:  The Shaping of Power, Rights, and Rule in Cyberspace”, Organizado por R. Deibert, J. Palfrey, R. Rohozinski e J. Zittrain, Abril 2010), resultado de um projeto da ONG “OpenNet Initiative” originada a partir da colaboração do Citizen Lab da University of Toronto, do Berkman Center for Internet and Society de Harvard, e da ONG “SecDev Group”.
No capítulo inicial intitulado “Beyond Denial - Introducing Next-Generation Information Access Controls”, Ronald Deibert e Rafal Rohozinski lembram que o surgimento da internet coincidiu com uma série de movimentos políticos que culminaram com a dissolução da União Soviética, a queda do muro de Berlin e do bloco comunista. No bojo de todo o entusiasmo decorrente do clima de restauração das liberdades individuais, a idéia da redenção tecnológica e da inevitável democratização fez surgir uma ideologia popular que identificava tecnologia com poder. Segundo Deibert & Rohozinski, essa idéia não era exatamente nova, pois o telégrafo, a iluminação elétrica, e a telefonia, todos surgiram em momentos históricos de grandes transformações levando a uma enorme linhagem de especulações concernentes ao papel democratizante da tecnologia nas mudanças políticas e sociais. Tal qual ocorreu com outros avanços tecnológicos, à medida que a internet tem crescido em termos de sua importância política, uma arquitetura de controle (por meio de tecnologia, regulação e normas) tem surgido para formatar uma nova paisagem geopolítica da informação. Desde a época do trabalho de pesquisa que culminou com a publicação do livro “Access Denied: The Practice and Policy of Global Internet Filtering“ (Organizado por R. Deibert, J. Palfrey, R. Rohozinski, e J. Zittrain, The MIT Press, Fev 2008), grandes mudanças ocorreram nas políticas e práticas de controle da internet. “A rubrica conveniente do terrorismo, da pornografia infantil, e da cibersegurança têm contribuído para uma esperança crescente de que os estados deveriam garantir a ordem no ciberespaço, incluindo policiar conteúdo indesejado. Paradoxalmente, estados democráticos avançados no âmbito da Organization for Security and Cooperation in Europe—incluindo membros da União Européia—estão (talvez sem ter a intenção) liderando a tendência para o estabelecimento de uma norma global em torno da filtragem de conteúdo político com a introdução de propostas para censurar discurso do ódio e conteúdo islâmico militante na internet”, advertem os autores, lembrando que a censura de conteúdo na internet não mais se restringe a regimes autoritários. A filtragem de conteúdo está se tornando uma norma.
Ao mesmo tempo, argumentam os autores, os estados também têm se tornado mais cientes da importância estratégica do ciberespaço levando a sua militarização. Exemplos como o uso inteligente da internet por insurgentes e militantes no Iraque e em outras partes do Oriente Médio, a importância da internet em conflitos como a guerra entre a Rússia e a Geórgia em 2008, e as recentes revelações a respeito de redes de ciberespionagem em larga escala têm enfatizado o impacto do ciberespaço nos aspectos mais mundanos de conflitos bélicos, e na competição geopolítica entre atores estatais e não-estatais. E o que se vê são estados abertamente engajados em plena corrida armamentista no ciberespaço, invariavelmente à revelia do respeito às liberdades individuais. E, em casos concretos, empresas acabam ajudando o estado a prender e monitorar ativistas, mesmo sem ter tido a intenção de fazê-lo. “A busca pelo controle da informação está hoje além da negação”, dizem os autores. O fato concreto é que a nova geração de métodos de filtragem levantam questões de suma importância no que concerne ao relacionamento entre cidadãos e estados.
Numa explícita convocação à responsabilidade corporativa, Rebecca MacKinnon, co-fundadora das ONG’s “Global Voices” e “Global Network Initiative”, declara em seu depoimento registrado em documento intitulado “Protecting and Advancing Freedom of Expression and Privacy in Information and Communications Technologies” e pronunciado numa audiência da Subcomissão Judiciária de Direitos Humanos e o Estado de Direito do Senado americano sobre “Global Internet Freedom and the Rule of Law” em 02/03/10, que “é essencial que a indústria global das TIC’s e todos os envolvidos assumam um compromisso público e compartilhado de respeitar os direitos dos usuários em face de ameaças crescentes à liberdade de expressão e à privacidade. A indústria das TIC’s é diversificada, e empresas diferentes podem tomar decisões diferentes sobre entrar ou sair de um mercado em circunstâncias específicas tais como o momento, a localização, os relacionamentos e a natureza de um produto, serviço ou negócio específico. Não existe abordagem do tipo ‘tamanho único’ para a responsabilidade corporativa, tampouco um único curso correto de ação ou de script para todos seguirem.”
Segundo MacKinnon, tal qual a liberdade física, a liberdade na internet requer uma luta constante e uma vigilância constante. Vai ser preciso também dispor de um ecossistema de apoio formado por indústria, governo e cidadãos conscientes da ameaça à liberdade no ciberespaço, todos trabalhando em conjunto em favor do objetivo comum.

Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE

segunda-feira, 12 de abril de 2010

O Ensino da Ética e da Cidadania Digitais

O ensino da ética e da cidadania digitais

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Num desses casos de sucesso viral na internet, eis que surge um vídeo clip que nos remete a reflexões profundas sobre o papel de pais e mestres na formação da cidadania digital em tempos de frenética e disruptiva evolução das novas tecnologias de comunicação e de socialização. No clip, um pai entrega à filha de 2 anos e meio de idade um exemplar do aparelho iPad recentemente lançado pela Apple. Em poucos segundos a garota já navega entre os diversos programas aplicativos através dos hoje ubíquos gestos típicos da interação com telas sensíveis ao toque, tão características da interação com o iPhone. Nos cinco minutos de duração do clip observa-se o quão à vontade se sente a garota: além de jogar uma espécie de soletrando infantil eletrônico, abrir um álbum de fotografias, tocar música num teclado virtual, jogar um vídeo game, e acionar a expansão do tamanho da tela para adaptar ao seu aparelho o programa aplicativo originalmente desenvolvido para o iPhone, a heroína infantil demonstra rapidamente uma familiaridade incomum com o novo “brinquedo”. É bem verdade que a criança não era exatamente uma noviça, pois já costumava brincar com o iPhone do pai, mas ainda assim, como observa MacGregor Campbell (“Innovation: iPad is child's play but not quite magical”, NewScientist, 09/12/10), diante de tamanha intimidade com a manipulação de objetos virtuais numa tela maior que sua própria cabeça é difícil não pensar que essa tela de multi-toques aparentemente simples definirá suas expectativas sobre o que um computador é e para que serve. Para essa geração, telas que não reajam ao toque vão ser entendidas como quebradas, e dispositivos que não possam fazer de tudo a qualquer momento serão no mínimo irritantes. A expectativa dessa “i-Geração” certamente será tal que objetos virtuais se comportem tão instantânea e intuitivamente quanto seus equivalentes físicos, e a dissolução da distinção entre o real e o virtual tanto pode parecer mágica quanto pode também se tornar o novo “normal”.

O fato é que o modo de interação humano-computador que começa a se concretizar deverá propiciar uma diminuição considerável das barreiras ao uso do computador e do telefone celular por segmentos menos capacitados a lidar com teclados e mouses, desde os acometidos de certos tipos de deficiência motora até crianças de idade ainda mais tenra. No caso dos dispositivos móveis e aparelhos celulares, por exemplo, a interação tradicionalmente ocorre através de botões e teclados, o que dificulta que a criança se sinta em pleno controle do dispositivo. Levando em conta que os avanços nas tecnologias de tela de toque e de entrada gestural podem melhorar significativamente a forma como as crianças interagem com dispositivos móveis, Carly Shuler, em “Pockets of Potential: Using Mobile Technologies to Promote Children’s Learning” (The Joan Ganz Cooney Center, New York, Jan/2009), considera fundamental o papel que as tecnologias de comunicação móvel podem desempenhar no estímulo a novas formas de aprendizado da nova geração, assim como na formação de uma geração de espírito verdadeiramente inovador. Tal qual demonstrou o Vila Sésamo (de Garibaldo e companhia), a exposição a mídias educacionais submetida a critérios de pesquisa científica pode acelerar o desenvolvimento de certas habilidades na criança, sobretudo nas áreas de comando de alfabetização fundamental, línguas estrangeiras, tópicos relacionados a ciência e matemática, colaboração, além de habilidades de pensamento crítico.
Dentre as principais oportunidades de aprendizado propiciadas pelos dispositivos de comunicação móvel Shuler destaca: (1) estímulo ao aprendizado “em qualquer lugar”, “em qualquer momento”; (2) atendimento a crianças menos favorecidas; (3) possibilidade de uma experiência de aprendizado mais personalizada; (4) capacidade de adaptação a ambientes de aprendizado diversos; (5) melhoria das interações sociais.

Há que se levar em conta que, com tanta exposição a mídias e com tanto acesso às tecnologias de comunicação e interação social, a criança precisa estar preparada para crescer e se desenvolver num mundo globalmente interconectado, multicultural e participativo. Em “Confronting the Challenges of Participatory Culture: Media Education for the 21st Century” (por H. Jenkins, com R. Purushotma, K. Clinton, M. Weigel e A. J. Robison, Comparative Media Studies Program, MIT, 2006) o conceito de cultura participativa é definido como sendo “uma cultura com barreiras relativamente baixas à expressão artística e ao engajamento cívico, forte apoio à criação e ao compartilhamento de criações, e algum tipo de aconselhamento informal através do qual o que é conhecido pelos mais experientes é passado para os mais novos.” Segundo Henry Jenkins, principal autor do relatório, vivemos numa época em que mais e mais jovens produzem (e não apenas consomem) mídia, se engajam em comunidades online, lideram grupos e comunidades de jogos, todos têm algo a contribuir e suas contribuições são valorizadas pelo grupo.

Extremamente rico em oportunidades de aprendizado mas ao mesmo tempo recheado de riscos, esse novo mundo participativo desperta ansiedade nos pais. E, com efeito, a primeira onda de ansiedade com respeito à convivência na internet se concentrou na segurança e nos chamados “predadores sexuais”. Porém hoje as principais preocupações dizem respeito ao modo como seus próprios filhos se comportam nesse espaço de convivência cibernética, de que forma interagem seja com amigos ou rivais, e que impressão seus perfis online podem vir a deixar nos futuros empregadores. Em artigo recente publicado no New York Times (“Teaching About Web Includes Troublesome Parts”, 08/12/10), Stephanie Clifford relata o caso de um professor do ensino fundamental do distrito de Milpitas (Califórnia) que começou este ano a dar aulas a alunos do 4º ano sobre como se comportar na internet, a partir do conteúdo curricular elaborado pela fundação “Common Sense Media” com base no trabalho de Howard Gardner, professor de Harvard, e reconhecida autoridade em educação e psicologia. Fundamentado nas recomendações do artigo “Young People, Ethics, and the New Digital Media: A Synthesis from the Good Play Project” (por C. James, K. Davis, A. Flores, J. M. Francis, L. Pettingill, M. Rundle, e H. Gardner, Harvard Graduate School of Education, 22/02/08), o conteúdo está baseado nas chamadas “linhas de falha ética” que decorrem da convivência cibernética sob forma de participação em redes sociais, blogs, jogos online, sistemas de mensagem instantânea, compartilhamento de música, filmes e outros conteúdos digitais, além de colaboração online: (1) identidade (como você se apresenta online?); (2) privacidade (o mundo pode ver tudo o que você escreve); (3) propriedade (plágio, reprodução de trabalho criativo); (4) credibilidade (fontes legítimas de informação); e, finalmente, (5) comunidade (interação com os outros).

Definindo “good play” (“boa jogada”) como a conduta online que é ao mesmo tempo significativa e cativante para o participante assim como responsável para com os outros na comunidade e sociedade no qual é adotada, os autores defendem que, com todo seu potencial participativo, as novas mídias são um “playground” no qual cinco fatores contribuem para a possibilidade da boa jogada: as qualidades das novas mídias digitais; alfabetizações técnicas relacionadas e em novas mídias; fatores centrados na pessoa, desde o desenvolvimento cognitivo e moral até as crenças e os valores de um jovem; culturas dos pares, tanto online quanto offline; e suportes éticos, incluindo a presença ou ausência de mentores adultos e currículos educacionais.

Diante de uma realidade inescapável, é imperativo que pais e educadores se juntem para assegurar que toda criança e todo jovem tenha acesso às habilidades e experiências necessárias para se tornar um cidadão digital, que possa articular seu entendimento de como as mídias amoldam as percepções, e seja devidamente socializado nos padrões éticos emergentes que devem guiar suas práticas como produtores (e não apenas consumidores) de mídia e participantes de comunidades do ciberespaço.

Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE

Investimentos e Notícias (São Paulo), 12/04/2010, 08:39hs, http://www.investimentosenoticias.com.br/ultimas-noticias/artigos-especiais/o-ensino-da-etica-e-da-cidadania-digitais.html