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domingo, 27 de fevereiro de 2011

A Esfera Pública Interligada e o Jornalismo do Futuro


A Esfera Pública Interligada e o Jornalismo do Futuro

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Soa cliché, mas vivemos de fato numa era em que o acesso à informação é o mais democráticode que se tem notícia na história da humanidade. Não obstante, o que tem se revelado mais conseqüente é a ampliação do acesso uns aos outros, de ser humano para ser humano, tudo isso propiciado pela internet e pela telefonia móvel.  Como já previa Clay Shirky em artigo escrito em Setembro de 2010 sobre a importância das mídias sociais no exercício da liberdade de associação e na coordenação de movimentos sociais (“The Political Power of Social Media: Technology, thePublicSphere, andPoliticalChange”, publicado no número de Jan/Fev 2011 da revista ForeignAffairs), temos historicamente exagerado no valor que atribuímos ao acesso à informação, ao mesmo tempo em que temos subestimado o valor do acesso uns aos outros.
É justamente nesse espírito que Shirky critica a proposta do governo americano, anunciada na palestra de Hillary Clinton em Janeiro de 2010 sobre liberdade na internet, de concentrar os esforços quase que exclusivamente no desenvolvimento e disseminação de ferramentas para contornar mecanismos de censura ao acesso utilizados por países que praticam a filtragem de conteúdo na internet. A mera recuperação do acesso à informação não se traduz necessariamente em maior democratização, pois a liberdade de associação é fundamental, e nisso as redes sociais e até mesmo o celular têm uma importância decisiva. A seqüência de movimentos populares que começou no Irã em 2009 e hoje se alastra pelo mundo árabe tem mostrado a força da nova mídia. Ao invés de uma arquitetura de-cima-para-baixo tal qual as mídias tradicionais, onde um grupo relativamente pequeno produz conteúdo para a grande massa consumir, a internet como ferramenta de comunicação e de associação põe o poder no indivíduo. “Na internet, todos têm voz”, como disse Hillary Clinton no seu segundo discurso sobre liberdade na internet, proferido em 15/02/11 na George Washington University. Para usar as palavras de Jose Antonio Vargas em seu artigo “Egypt, The Age Of Disruption And The 'Me' In Media” (The Huffington Post, 07/02/11), na internet “o indivíduo pode ser ouvido, pode revidar, o que redefine o nosso sentido de comunidade – o ‘eu’ facilmente se eleva a ‘nós’”.
Segundo YochaiBenkler, autor do influente tratado “The Wealth of Networks: How Social Production Transforms Markets and Freedom” (Yale University Press, 2007), a internet como tecnologia, e a economia da informação interligada como um modelo social e organizacional de informação e produção cultural, juntas abrem caminho para o surgimento de uma plataforma alternativa à mídia de massas para a esfera pública. Seria o que vem sendo chamado de “esfera pública interligada” (em inglês, “networkedpublicsphere”), e que se caracterizaria por não dispor de pontos óbvios de controle ou de exercício da influência, seja vindo do estado ou de corporações. É como se fosse uma espécie de inversão do modelo de mídia de massa no sentido de que a esfera pública interligada seria movida fortemente por aquilo que agrupamentos densos de usuários consideram intensamente interessante e envolvente, ao invés de pelo que grandes parcelas a consideram levemente interessante na média. Nesse sentido, avalia Benkler, a promessa é a de que a esfera pública interligada deverá propiciar uma plataforma para que cidadãos engajados cooperem e contribuam com observações e opiniões, e venha a servir como um cão de guarda sobre a sociedade num modelo de produção baseada em pares. 
Um exemplo se destaca. Com todo o seu papel nos movimentos populares que se desenrolam no mundo árabe amplamente reconhecido, sobretudo no que diz respeito à mobilização e à associação de grupos descontentes com a situação política vigente, a Facebook é, sem dúvida, a rede social mais explicitamente associada a nossas identidades individuais e coletivas. Uma espécie de diretório universal de pessoas mundo afora, a Facebook se revela mais do que uma simples ferramenta tecnológica de compartilhamento de informações, pois lá todo cidadão privado tem uma identidade pública.
Ainda segundo Benkler, os elementos fundamentais da diferença entre a economia da informação interligada e a mídia de massa são a arquitetura da rede e o custo de se tornar um produtor (ao invés de consumidor) de discurso.O primeiro elemento é a mudança de uma arquitetura baseada num ponto focal de onde saem as ligações para todos os destinos na mídia de massa (paradigma “hub-and-spoke”), para uma arquitetura distribuída com conexões multidirecionais entre todos os nós no ambiente da informação interligada. O segundo elemento é a eliminação prática dos custos de comunicação como uma barreira para o falar através das fronteiras associacionais. Tomadas em conjunto, tais características têm provocado mudanças radicais na capacidade de indivíduos, por si sós ou em parceria com outros, participarem ativamente na esfera pública, ao invés de se comportarem como leitores passivos, ouvintes ou telespectadores.
Em entrevista ao programa “On The Media” da radio americana NPR em 16/07/10, discutindo o futuro da produção e a troca de informações na sociedade contemporânea,Benklerlembra como a economia da informaçãoprofissional, tradicionalmente unidirecional e demandante de altos volumes de capital, e que dá sustentação aos grandes jornais americanos há mais de 150 anos, está dando lugar a um modelo cooperativo, de baixa demanda de investimento em termos de capital, e multidirecional no sentido de que não dispõe de um controle centralizado da produção da informação. Já se observa uma transição para um sistema misto no qual cidadãos interessados em contribuir para o bem comum decidem combinar sua disponibilidade de tempo e sua expertise com a colaboração de profissionais da informação para desvendar e disseminar informações importantes para a sociedade civil. Exemplo concreto é a organização independente sem fins lucrativos dedicada ao jornalismo investigativo chamada ProPublica, fundada em 2007, premiada com o prestigioso Pulitzer Prize em 2010 pela cobertura do trabalho humanitário de um hospital de Nova Orleans durante a tragédia provocada pelo furacão Katrina.
Em artigo intitulado “A FreeIrresponsible Press: WikiLeaks and the Battle over the Soul of the Networked Fourth State” (08/Fev/11, a ser publicado no “Harvard Civil Rights-Civil Liberties Law Review”), Benkler chama a atenção para o fato de que o chamado “quarto poder” americano está em meio a uma profunda transformação, cujas raízes se encontram nos anos 1980’s, mas cujo ritmo, intensidade e direção têm sido modificados nessa última década. O papel da internet nessa transformação é fundamental, argumenta Benkler, sobretudo através da adoção de meios de produção descentralizada da informação, dando origem a novas oportunidades para que modelos de empreendimentos jornalísticos que não são baseados nem no mercado nem no estado possam desempenhar um novo e significativo papel na produção da esfera pública.
Aos receosos de uma mudança radical e na possível ameaça a um dos principais instrumentos democráticos que é a imprensa livre, Benkler lamenta que não há como prever o que deverá surgir dessa transformação na indústria do jornalismo, mas ao mesmo tempo traz uma mensagem de otimismo e de civilidade: “devemos cuidar para que haja algum conjunto de pessoas que são profissionais, que investigarão de uma maneira sustentada, e que eles possam sobreviver sem necessariamente ser milionários”. E continua: “Precisamos da capacidade de extrair informação de entidades poderosas contra a vontade delas, de modo que precisamos de alguma forma de mecanismos de extração e preservação de vazamento.” Talvez não seja necessário usar profissionais para isso, e possivelmente o melhor caminho seja um sistema distribuído de produção e colaboração online baseada em pares por pessoas que se apresentam como voluntários por pura convicção, conclui Benkler.
Em 2010, quatro anos após sua fundação, a organização ativista pela transparência em governos chamada Wikileaks, liderada pelo ex-hacker e andarilho australiano Julian Assange, se põe no centro de uma verdadeira tempestade em torno do papel do indivíduo na esfera pública interligada. Antes de qualquer julgamento de valor, é preciso reconhecer, como o faz YochaiBenkler, que se trata de uma tendência em função de todo um processo de democratização trazido pela internet. 
Segundo a ElectronicFrontier Foundation, já são vários os sites “boca-no-trombone” (em inglês, “whistleblower”): (i) OpenLeaks, fundado pelo ex-braço-direito de Assange, Daniel Domscheit-Berg; (ii) LocalLeaks, servindo a cerca de 1.400 jornais americanos; (iii) Rospil, criado pelo jornalista Alexei Navlny; (iv) RuLeaks, uma espécie de versão russa do WikiLeaks; (v) GreenLeaks.org, organização sem fins lucrativos que provê uma plataforma para vazamento de informações sobre o meio-ambiente; (vi) GreenLeaks.com, empresa de mídia que também publica informações sobre o meio-ambiente. Além desses, ainda há a intenção declarada de organizações tradicionais como o New York Times e o Al-Jazeera, de disponibilizar suas próprias plataformas de recebimento de informações dos chamados "whistleblowers".
Sob forma de conclusão e de previsão sobre o jornalismo do futuro, Benkler cita o The Guardian: “o jornalismo do futuro provavelmente será um novo modelo de cooperação entre os elementos sobreviventes do quarto poder tradicional, de mídia de massa, e seus modelos interligados emergentes”. Mas lembra que a tendência é a de que a transição não seja nada suave.
Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE