Páginas

segunda-feira, 29 de abril de 2013

A definição de conteúdo digital em computação em nuvem


A definição de conteúdo digital em computação em nuvem
SEG, 29 DE ABRIL DE 2013 13:53


As novas tecnologias de comunicação digital criaram um mundo virtual sem fronteiras geopolíticas, onde é possível a disseminação e o acesso dos mais diversos bens e serviços da indústria cultural, tecnológica e da informação.

Dentre as tendências surgidas no meio tecnológico, temos a computação em nuvem, baseada na “virtualização” ou “digitalização” de recursos ou de serviços computacionais, disponíveis por meio de um provedor ou fornecedor, que podem ser utilizada por órgãos governamentais ou não governamentais, por empresas ou pessoas físicas, mediante o acesso a qualquer tempo, ou lugar, independente da localização geográfica do usuário. Daí a perspectiva de que em um futuro não muito distante a computação em nuvem funcione como uma “utilidade”, tal qual a eletricidade, a água e a telefonia.

Alguns autores entendem que as tecnologias existentes sobre as quais repousam os conceitos de computação em nuvem não são novas, tais como computação distribuída e acesso a recursos na base do pague-pelo-uso, representando tão-somente um modelo diverso de terceirização de serviços tecnológicos ou uma nova maneira de realizar negócios no ambiente virtual.

No entanto, nas palavras de John Hagel e John Seely Brown, computação em nuvem seria, “parte de uma terceira onda de disrupção tecnológica que primeiro ocorreu com o computador pessoal nos anos 1970’s” (“The disruptive architecture of the cloud,” Financial Times, Londres, 10/02/2011).

De fato, o crescimento da computação em nuvem é um dos principais avanços na história da computação. Ela tem expandido o acesso a altos recursos computacionais para todos os usuários que se utilizam das redes sociais como Facebook ou webmail, ou que compartilham fotos nos álbuns do Flickr e do Picasa. Pequenas e médias empresas hoje também desfrutam da possibilidade de ter acesso a altas capacidades de processamento até então reservadas a grandes corporações.

Todavia, na medida em que estes recursos e serviços computacionais evoluírem nesta plataforma, com o uso crescente de ‘conteúdos digitais’, surge a necessidade de uma nova camada de infraestrutura legal e comercial para solucionar os conflitos surgidos neste arcabouço de computação. Indubitavelmente, as preocupações relacionadas à proteção do consumidor e da segurança de dados, da validade dos contratos eletrônicos, da privacidade e da propriedade intelectual, não são apenas “desafios da nuvem”. Todas elas têm sido alvo de controvérsias no contexto do comércio eletrônico (e-commerce) ao menos por duas décadas. Entretanto, considerando que a computação em nuvem é um dos segmentos de maior crescimento da indústria da Tecnologia da Informação (TI), ela cria novos desafios ou no mínimo intensifica as dificuldades já existentes.

Urge observar que, a despeito da crescente importância do mercado da economia digital, em que a distribuição e o acesso ao ‘conteúdo digital’ têm se tornado um aspecto essencial da vida empresarial e do consumidor, até recentemente, a regulamentação desta matéria não despertava a atenção da maioria dos países industrializados. E embora nos últimos anos venha surgindo uma literatura acerca do ‘conteúdo digital’, permanece verossímil a observação de que na maior parte dos Estados-Membros da União Européia (UE), por exemplo, tem havido pouca ou praticamente nenhuma revisão das medidas legislativas já existentes para adequar as respectivas leis de proteção ao consumidor ao fornecimento do ‘conteúdo digital’.

No momento existe uma profunda incerteza no direito interno dos Estados-Membros da UE acerca das cláusulas dos contratos que envolvem o fornecimento e o uso de ‘conteúdo digital’. Seria o caso deste tipo de conteúdo ser considerado como serviço, como mercadoria, ou como algo sui generis? Acrescente-se que mais recentemente, os modos de acesso ao conteúdo digital envolvem, não apenas o meio tangível, como um programa de computador adquirido em CD, porém ainda a transferência (download), o streaming ou a computação em nuvem, que são meios intangíveis. Como o conteúdo digital cada vez mais se desloca para a nuvem, e, assim, deixa de ser fornecido em um meio físico, a incerteza se agrava sobremaneira.

Por tal razão, em outubro de 2011, a Comissão Européia publicou uma Proposta de Regulamentação relativa a um "direito comercial europeu comum", denominada na língua inglesa de “Common European Sales Law – CESL”. A CESL busca proporcionar um novo regime do direito contratual aplicável a todos os 27 Estados-Membros, trazendo harmonização ao direito de compra e venda na União Européia. O âmbito de aplicação material da proposta CESL inclui, contudo, apenas três tipos de contratos, a saber, compra e venda de produtos, fornecimento de conteúdos digitais e prestação de serviços relacionados a um dos dois tipos de contrato anteriores (ou a uma combinação de ambos). A expressa inclusão das normas relativas à oferta de contratos de fornecimento de ‘conteúdo digital’ representa, sem dúvida, um dos aspectos mais inovadores desta nova proposta de regulamentação.

O referido regulamento de maneira implícita observa algumas das questões de grande importância para o contínuo desenvolvimento dos serviços de nuvem e da defesa do consumidor digital na Comunidade Européia. A proposta CESL segue a abordagem de que um regime sui generis se faz necessário para os contratos de ‘conteúdo digital’. O texto deliberadamente abandona a dicotomia de categorização do conteúdo digital como “produto” versus “serviço”, ou ainda como bem “tangível” versus “intangível”, que têm estado presente nos contratos eletrônicos até o momento. Assim, afastando essas classificações estreitas e construídas para o universo dos contratos realizados com bens materiais e tangíveis, a proposta foi capaz de estender a grande maioria dos direitos e garantias aplicados aos contratos de compra e venda de produtos aos contratos de fornecimento de ‘conteúdo digital’ que venham a envolver o uso da computação em nuvem.

No entanto, a proposta CESL foi recebida com forte oposição por parte de diversos organismos profissionais no Reino Unido e de outros países na Europa. Uma objeção que parece, de fato, pertinente foi suscitada pela Law Society of England and Wales, que desafiou a aplicabilidade da CESL para alguns serviços em nuvem.

Em estudo intitulado “On the Applicability of the Common European Sales Law to some Models of Cloud Computing Services”, realizado em parceria com o Professor Chris Reed, do “Centre for Commercial Law Studies”, Queen Mary, Londres e publicado no portal da Social Science Research Network (SSRN, http://ssrn.com/abstract=2254993), defendemos a aplicabilidade da CESL a alguns serviços de nuvem quando envolve o fornecimento de ‘conteúdo digital’. Questionamos se os provedores de serviços em nuvem serão persuadidos a adotar esse instrumento opcional em suas transações em nuvem transfronteiriças. Argumentamos que a CESL será acolhida pelos provedores somente se essa escolha reduzir a incerteza de seus contratos de nuvem.

Reconhecendo que a precisão técnica é inatingível numa área de atividade que está mudando tão rapidamente, concluímos que, para que haja efetivamente a desejada redução da incerteza, alguns aspectos devem ser considerados:

(a) A proposta CESL é passível de ser aplicada apenas para alguns serviços em nuvem. O mero fornecimento de “Infraestrutura como Serviço” (IaaS) e de “Plataforma como Serviço” (PaaS) não se enquadra no escopo da CESL. Porém, ela ainda é capaz de regular muitas fontes de “Software como Serviço” (SaaS).
(b) Aquelas fontes de SaaS que permitem ao usuário armazenar, gerar, modificar ou comunicar os seus próprios conteúdos, fogem do âmbito da CESL. Em contrapartida, fontes de SaaS que concedem ao usuário acesso a conteúdo produzido por outros, e que pode ser consumido à vontade, estão nitidamente dentro da guarida da CESL. Neste particular, tal possibilidade facilita a redução da incerteza.
(c) No entanto, há um debate legítimo sobre o quanto de SaaS que provê apenas streaming de conteúdo, poderá ser inserido no escopo da CESL. Esta incerteza é definitivamente preocupante.

Não obstante todas as indicações de que o efeito da adoção da CESL tende a ser positivo entre os Estados-Membros da Comunidade Européia, nosso estudo nos permite concluir que ainda há um longo caminho a ser percorrido antes que a proposta venha a superar a incerteza que os provedores e fornecedores estão passíveis de encontrar nos contratos de serviços de computação em nuvem.



Clarice Marinho Martins de Castro, Professora, Universidade Católica de Pernambuco, e Doutoranda, Centro de Informática da UFPE
Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE