Páginas

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

A Privacidade Localizacional e o Perigo de Perdê-la

ARTIGOS ESPECIAIS

10/08 - 09:30

A privacidade localizacional e o perigo de perdê-la

10 de agosto de 2009 - Muito em breve sistemas que criam e armazenam registros digitais dos movimentos das pessoas nos espaços públicos estarão fazendo parte da vida corriqueira. Alguns desses sistemas são verdadeiramente inovadores, e deverão trazer benefícios ao cidadão, desde maiores conveniências no dia a dia até novos e transformadores tipos de interação social. Infelizmente, tais sistemas representam uma grande ameaça à chamada privacidade localizacional. Privacidade localizacional (também conhecida como “privacidade de localização”) se refere à capacidade de um indivíduo de ir e vir em espaços públicos com uma expectativa razoável de que sua localização não será sistematicamente e secretamente registrada para uso posterior. Por exemplo, sistemas de cobrança eletrônica de pedágio, sobretaxa de congestionamento, e controle de tráfego automatizado (em grandes cidades, com o propósito de restringir o acesso a zonas centrais), todos violam a privacidade localizacional: sutilmente, tais sistemas criam uma infraestrutura de vigilância penetrante que, de forma silenciosa e a baixo custo, agrega tremendas quantidades de dados sobre as localizações de condutores de veículos. Obviamente, tais dados podem eventualmente ser usados para propósitos indesejáveis ao cidadão.

É inegável que serviços de coleta de informações sobre veículos serão de grande utilidade, por exemplo, na melhoria da eficiência da rede de transportes de uma dada localidade, trazendo assim benefício para o cidadão que deseja se locomover. A coleta eletrônica de pedágio reduz engarrafamentos nos pontos de coleta, e as formas mais sofisticadas de cobrança (como a de Londres, que cobra taxa ao condutor que entra numa determinada região mais propícia a engarrafamentos), reduzem os tempos de transporte em horas de pico e geram receita para melhorias no trânsito. Embora a eficácia da fiscalização eletrônica de trânsito (por exemplo, lombadas eletrônicas) seja controversa, há a possibilidade de se explorar essa tecnologia para a redução dos índices de infração e de acidentes. Mais ainda, a coleta e análise rápida de estatísticas de trânsito podem ajudar aos condutores a escolher as melhores rotas além de permitir a avaliação do retorno no investimento realizado em melhorias no trânsito de uma determinada localidade. Por último, mas não menos importante, há o benefício em potencial no que diz respeito ao setor de seguro de veículos. Nos Estados Unidos algumas seguradoras já adotam planos de seguro baseados em informações recebidas do equipamento GPS instalado nos veículos. Em princípio, essa ferramenta poderia levar a uma melhor eficiência dos serviços de seguro automotivo, levando eventualmente a preços mais baixos. Em todos esses casos, no tentao, há uma enorme ameaça à privacidade localizacional do cidadão.

Em artigo recente intitulado “Pay As You Drive ‘Black Boxes’ Threaten Driver Privacy” (” ‘Caixas Pretas’ do tipo Pague Conforme Você Roda Ameaçam a Privacidade do Condutor”, 15/07/09), Jennifer Granick, diretora de liberdades civis da Electronic Frontier Foundation (EFF), organização não-governamental sem fins lucrativos sediada em San Francisco dedicada à defesa dos direitos civis na internet, chama a atenção para um projeto de lei do estado da Califórnia que permitirá que o preço do prêmio do seguro automotivo dependa do número exato de kilômetros que o carro rode no período segurado. Ao implementar a regulamentação denominada “Pay As You Drive” (“Pague Conforme Você Roda”), o estado da Califórnia parece disposto a conferir poderes às seguradoras de exigir que os veículos dos segurados sejam equipados com dispositivos “caixa-preta” que poderiam transmitir para a seguradora toda sorte de dados sobre os movimentos do veículo (aceleração, frenagem, etc.), assim como o comportamento do condutor (hábitos de condução, uso do cinto, etc.). Segundo Granick, embora o órgão de trânsito da Califórnia tenha recuado de sua posição anterior de que esses dispositivos deveriam rastrear a localização do condutor – certamente uma evolução – ainda assim todo veículo contém um dispositivo confiável, resistente à adulteração, que verifica a kilometragem real: o odômetro.

Pior ainda, não parece haver qualquer restrição sobre o que as empresas seguradoras fariam com os dados. Considerando que as tais caixas-pretas podem coletar informações de forma penetrante, silenciosa, e a baixo custo para qualquer uso posterior pela seguradora, por entidades privadas ou mesmo pelo governo, há o perigo real de que tais informações possam não apenas ser usadas para revelar as afiliações políticas, religiosas, etc., do condutor, mas também vir a ser utilizadas para aumentar o valor do prêmio do seguro se o condutor roda e/ou estaciona em regiões com alto índice de roubo de veículos, ou até mesmo influenciar no valor do seguro-saúde ao revelar que o condutor frequentemente visita uma lanchonete do McDonald’s.

Serviços de busca baseada em localização disponibilizados em aparelhos de telefonia móvel se constituem num outro importante exemplo de tecnologia que pode ameaçar a privacidade localizacional. Os aparelhos celulares mais modernos já começam a ser capaz de se localizarem com base na força do sinal ou na visibilidade da torre mais próxima, ou até mesmo em dados do dispositivo de posicionamento por satélite (GPS) com os quais estão equipados alguns smartphones. Na verdade, a importância da tecnologia de celulares na vida cotidiana parece ter definitivamente decolado de uma forma que poucos teriam previsto. Conforme relata Sam Altman em entrevista recente a Charlie Rose (28/07/09), um adolescente americano tipicamente envia quase 2.000 mensagens de texto por celular a cada mês. (Sam Altman é co-fundador e CEO da Loopt, empresa fundada em 2005, baseada em Mountain View, Califórnia, que provê um sistema de compartilhamento de localização baseado em celulares equipados com GPS, permitindo que os usuários se localizem uns aos outros usando seus aparelhos celulares. Com mais de um milhão de usuários atualmente, a Loopt também permite que o usuário explore a vizinhança de onde se encontra conectando-o a provedores de conteúdo como o Yelp, uma espécie de “páginas amarelas online”.)

Nos dias de hoje é grande a dependência do aparelho celular, que parece estar cada dia mais inserido no cotidiano. E uma de suas peculiaridades é que eles (sobretudo os smartphones) são dispositivos que “sabem” onde estão, algo que não fazia parte do mundo dos PC’s e da internet. Isso permite que se utilize a chamada tecnologia da localização, de modo que um usuário possa, se assim o desejar, compartilhar sua localização com outras pessoas. Igualmente, ao usuário se apresenta a possibilidade de encontrar fácil e instantaneamente serviços na vizinhança, tais como restaurantes, bares, ou hospitais. Como diz Altman, todos esses são novos modos de comportamento que antes não existiam, mas que agora se tornaram possíveis devido aos tais serviços de localização. Por essa razão, Altman acredita que o celular deverá ser um dispositivo talvez mais revolucionário que o próprio computador pessoal. Na realidade, há mais celulares que PC’s no mundo hoje, e as métricas de uso de aparelhos móveis revelam índices nunca atingidos pelos computadores pessoais. Além do mais, o celular é um companheiro nas 24 horas, nos sete dias da semana.

De olho no potencial dos serviços de localização, a Google adquiriu, em 2005, a Dodgeball, uma empresa provedora de serviços de rede social para celular baseados em localização. Em Março deste ano a Dodgeball foi descontinuada e substituída pelo produto da Google conhecido como Latitude, lançado no mês anterior. Latitude propicia a um usuário de celular que permita a certas pessoas de sua lista de contatos do Gmail rastreá-lo onde estiver. Essas pessoas podem rastrear o usuário (isto é, seu telephone móvel) no Google Maps através de suas contas no iGoogle. O usuário pode controlar a precisão e os detalhes que cada um dos outros usuários podem ver – uma localização exata pode ser permitida, ou pode ser limitada a identificar apenas a cidade. Tal qual o serviço da Loopt, no Latitude o usuário pode desativar temporariamente tal permissão, ou até mesmo entrar manualmente com uma localização.

Em Março último, graças aos esforços da EFF (conforme o artigo “EXCLUSIVE: Google Takes a Stand for Location Privacy, Along with Loopt”, por Kevin Bankston, 04/03/09), tanto a Google quanto a Loopt decidiram assumir uma posição firme no que concerne as proteções legais da privacidade de seus usuários caso o governo venha a solicitar os dados coletados pelos respectivos sistemas. No âmago da política de proteção de ambas as empresas está a sinalização “venha com uma ordem judicial”. Além do mais, segundo o compromisso público assumido tanto pela Google quanto pela Loopt, enhum dos sistemas de localização mantém um histórico da localização de seus usuários: a cada vez que o sistema recebe uma informação sobre a localização de um usuário, essa informação sobrepõe a anterior. Que assim seja!

Afinal de contas, preservar a privacidade localizacional é manter a dignidade e a confiança na prerrogativa do ir e vir em espaços públicos. O benefício tecnológico é muito bem-vindo, desde que o cidadão mantenha o controle sobre com quem e quando compartilhar sua localização. No início deste mês de Agosto a EFF publicou um relatório intitulado “On Locational Privacy, and How to Avoid Losing it Forever” (“Sobre Privacidade Localizacional, e Como Evitar Perdê-la para Sempre”), por Andrew J. Blumberg e Peter Eckersley. Entre outras coisas, o relatório chama a atenção para um cenário não muito distante do possível: suponha que uma seguradora consegue obter um registro dos movimentos de Maria durante os últimos doze meses, e decide que um determinado aspecto desse histórico se constitui em razão suficiente para aumentar o valor do prêmio do seguro ou mesmo rejeitar sua cobertura. O problema com tal decisão é que ela é injusta, pois Maria não terá tido condições de contestá-la, assumindo que ela não está informada de que seu histórico de movimentos está nas mãos da companhia seguradora. Pior ainda, a empresa pode estar mal informada, e, nesse caso, como é que Maria vai ficar sabendo disso para então fazer uma contestação?

Conforme Blumberg & Eckersley, no mundo de hoje e no de amanhã, essas informações coletadas pelos sistemas de localização estão sendo obtidas de forma silenciosa por dispositivos ubíquos, e possivelmente estarão disponíveis para análise por parte de muitas entidades que poderão consultá-las, comprá-las ou mesmo solicitá-las através de intimação judicial. Ou até mesmo pagar a um hacker para roubar o histórico de movimentos de um ou vários cidadãos. É essa transformação para um regime no qual as informações sobre a localização são coletadas silenciosamente, e a baixo custo que mais preocupa.

(Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE)

Investimentos e Notícias (São Paulo), 10/08/2009, 09:30hs, http://investimentosenoticias.com.br/IN_News.aspx?Parms=2595128,408,100,2

Blog de Jamildo (Jornal do Commercio, Recife), 10/08/2009, 09:30hs, http://jc3.uol.com.br/blogs/blogjamildo/canais/artigos/2009/08/10/a_privacidade_localizacional_e_o_perigo_de_perdela_51791.php


Nenhum comentário: