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segunda-feira, 5 de outubro de 2009

A Lei de ruptura e o descompasso entre a tecnologia e os sistemas sociais, econômicos e legais

A Lei de ruptura e o descompasso entre a tecnologia e os sistemas sociais, econômicos e legais



5 de outubro de 2009 - Tanto a velocidade quanto a trajetória da revolução digital superam qualquer outra onda de mudanças no que diz respeito à quantidade e a força dos picos de alta, o que, segundo Larry Downes & Chunka Mui (“Unleashing the Killer Apps”, Harvard Business Press, 2000), parece nos oferecer constantemente o que Alvin Toffler chamou de “choque do futuro”. Downes & Mui chamam isso de “A Lei de Ruptura”, um simples porém inevitável princípio da vida moderna: a tecnologia muda a um ritmo exponencial, porém os sistemas sociais, econômicos e legais mudam a um ritmo incremental. Bem aos moldes do que disse Alan Kay (mais conhecido por ter sido um dos primeiros a conceber o laptop e a arquitetura das modernas interfaces gráficas dos computadores, além de ser considerado o pai da chamada programação orientada a objetos), “a melhor maneira de prever o futuro é inventá-lo”, a tecnologia que inventamos tem o potencial de mudar o mundo a um ritmo acelerado, porém as regras sociais, econômicas e de convivência humana parecem não conseguir acompanhar. E à medida que aumenta a lacuna entre o velho e o novo mundo, conflitos entre os referenciais moldados na era do motor a vapor e uma geração que cresceu com telefones celulares, iPods e vídeo games se tornam mais agudos e mais perigosos.

Pouco mais de uma década após o estopim da chamada revolução da internet, é patente a incapacidade das regras que tiveram sua origem em um mundo analógico para lidar com conflitos típicos da era digital, e isso tem provocado ainda mais pressão nos já pressionados sistemas legais sobretudo o dos EUA. Conflitos sobre o uso da informação, exemplificados nos milhares de processos judiciais movidos pela indústria fonográfica contra seus próprios consumidores (muitos ainda em idade adolescente), terão em breve a companhia de disputas emergentes sobre privacidade, liberdades civis no ciberespaço, controle da rede, crime da informação, e comércio global, prevê Larry Downes. Em seu último livro intitulado “The Laws of Disruption” (Basic Books, Outubro 2009), Downes lembra que, à medida que a distância entre a inovação e a lei que a regula tem aumentado, o resultado mais alarmante é a velocidade com a qual as tensões entre os dois têm subido.

Downes considera que a batalha entre inovação e a lei está chegando num momento crítico. E vai mais além: “Nada pode parar o caos que seguirá. No entanto, o caos é necessário. A evolução dos sistemas legais é lenta e incremental.” De modo semelhante ao que Thomas Kuhn chamou de “mudanças de paradigma” na ciência, e à chamada “destruição criativa” de Joseph Schumpeter, as tecnologias que causam ruptura, sejam as ferrovias ou a internet, invocam transformações dramáticas, e novos experimentos desafiam diretamente os princípios fundamentais da ordem estabelecida, forçando o surgimento de um período difícil, porém crítico de reinvenção, seguido de um outro período de evolução normal.

É fato que, com a tecnologia digital tendo se tornado ubíqua, temos nos acostumado a concordar com termos de serviço de portais de internet simplesmente acionando um clique, a disponibilizar publicamente arquivos contendo música, imagem ou filme, e a acrescentar aplicativos em nossos aparelhos celulares. Na maioria das vezes, sequer cogitamos se estaríamos cometendo alguma infração contra a lei, ou até mesmo contra a moral. Como diz L. Gordon Crovitz em recente artigo de opinião no Wall Street Journal intitulado “You Commit Three Felonies a Day” (“Você Comete Três Crimes por Dia”, 28/09/09), quando pensamos no ritmo de mudanças na tecnologia, é quase sempre para admirar o quanto o poder de computação tem aumentado ao mesmo tempo que seu custo barateado, ou até mesmo o quão amplo é o elenco de alternativas de comunicação que está à nossa disposição. Raramente paramos para refletir o quanto esse ritmo de mudanças está cada vez mais em descompasso com algumas das partes mais lentas de nossa cultura. Em particular, as mudanças tecnológicas a um ritmo acelerado tendem a agravar uma situação já considerada desconfortável descrita por Harvey Silverglate, advogado e ativista dos direitos civis americano, em seu novo livro "Three Felonies a Day" (“Três Crimes por Dia”, Encounter Books, Setembro 2009): esse é o número de crimes que Silvergate estima que o americano médio hoje comete involuntariamente a cada dia devido a leis vagas. E a tecnologia põe lenha na fogueira ao trazer sua própria complexidade, fazendo com que atividades inocentes se tornem potencialmente criminosas.

Silverglate relata diversos casos nos quais os promotores não entendiam ou não queriam entender de tecnologia. Um agravante, segundo o autor, é a tendência que ele vê acelerada desde os anos 1980’s de promotores abandonarem o princípio de que não pode haver crime sem a intenção criminal. Na lei comum inglesa, herdada pelos Estados Unidos, crime requer intenção, e, segundo Silvergate, essa proteção está desaparecendo no seu país: “Desde a época do New Deal, o Congresso Americano tem delegado a várias agências administrativas a tarefa de escrever as leis,” mesmo que o “Congresso tenha demonstrado uma crescente disfunção na concepção de legislação que possa de fato ser entendida.”

Um dos casos relatados por Silvergate se passa em 2001, quando um cidadão chamado Bradford Councilman foi condenado no estado de Massachusetts por violar as leis de escuta eletrônica (“Wiretap Act”). Acontece que ele trabalhava numa empresa que oferecia um serviços online de lista de livros, e atuava também como provedor de serviços de internet para livrarias. Em sua rotina como provedora de acesso, a empresa frequentemente interceptava e copiava e-mails como parte do processo de transportá-los através da web para os destinatários. Silvergate conta que as leis da escuta eletrônica foram “escritas antes do surgimento da internet, frequentemente emendadas, nem sempre claras, e normalmente vão perdendo o passo e se tornando incapaz de acompanhar a velocidade fulminante da mudança tecnológica.” Para infelicidade de Councilman, os promotores escolheram interpretar a função de provedor de copiar momentaneamente as mensagens à medida que elas fossem passando pelo sistema como sendo similar a fazer escuta sem permissão na comunicação. O caso se arrastou por diversas rodadas de julgamento, sem nenhum juiz ter levado em conta o óbvio fato de que é dessa forma que os provedores de acesso operam, e somente após seis anos um júri considerou Councilman inocente.

Crovitz conta que em outros casos relatados por Silvergate a falta de entendimento sobre como funciona a internet resultou em criminalização ao pleno exercício da liberdade de expressão. Em um desses, um estudante saudita em Idaho foi condenado em 2003 por oferecer “apoio material” a terroristas. Tendo operado com portais da web para uma associação de caridade muçulmana que se dedicava a treinamento religioso normal, o estudante foi processado com base na alegação de que, se um usuário seguisse os links disponibilizados em seus portais, acabaria encontrando comentários violentos anti-americanos em outros sítios. Obviamente, a internet funciona com base em cadeias de links, portanto se há culpabilidade por alguma coisa numa cadeia de links, seria praticamente impossível evitar uma condenação. Segundo Silvergate, o que ocorre é que novas tecnologias como a web “assustam os legisladores porque eles não as entendem e querem controlá-las.”

O receio de Crovitz é que, como a lei americana é construída ao longo do tempo por decisões das cortes, estatutos e regulações, e às vezes até mesmo as leis criminais são deliberadamente vagas a serem definidas caso a caso, a tecnologia venha a exacerbar o problema das leis tão abertas e vagas que se tornam difíceis de cumprir, a ponto de que todos os cidadãos acabem se tornando criminosos em potencial.

(Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE)

Investimentos e Notícias (São Paulo), 05/11/2009, 11:00hs, http://www.investimentosenoticias.com.br/ultimas-noticias/artigos-especiais/a-lei-de-ruptura-e-o-descompasso-entre-a-tecnologia-e-os-sistemas-sociais-economicos-e-legais.html

Blog de Jamildo (Jornal do Commercio Online, Recife), 05/11/2009, 11:50hs, http://jc3.uol.com.br/blogs/blogjamildo/canais/artigos/2009/10/05/a_lei_de_ruptura_e_o_descompasso_entre_a_tecnologia_e_os_sistemas_sociais_economicos_e_legais_55183.php


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