As smart grids e o risco à privacidade
A título de definição, uma “grade inteligente” (em inglês, “smart grid”) é aquela que fornece eletricidade aos consumidores usando tecnologia digital para controlar aparelhos elétricos nos lares dos consumidores com o fim de economizar energia, reduzir custos e aumentar a confiabilidade e a transparência dos serviços de fornecimento de energia elétrica. O fato é que as redes atuais não foram originalmente desenhadas para incorporar outros objetivos além do fornecimento da energia, tais como eficiência, redução de impactos ambientais, incorporação de fontes alternativas, serviços flexibilizados conforme a escolha do consumidor, e a cibersegurança do sistema como um todo. Esforços de modernização têm sido empreendidos de modo a tornar a rede mais inteligente, e a expectativa é de que a infraestrutura de apoio a uma smart grid deverá ser capaz de informar aos consumidores sobre seu consumo diário de energia, inclusive com o detalhamento a nível de cada aparelho instalado em sua residência. Se, por um lado, há o benefício de contribuir para os esforços de redução dos impactos ambientais assim como das contas de energia de cada consumidor, por outro lado surge a possibilidade de haver coleta de informações detalhadas sobre o uso e os padrões de consumo da energia no âmbito do recanto privado por excelência: nossas próprias casas.
A bem da verdade, o conceito de smart grid já faz parte das discussões sobre a crise do aquecimento global. Em palestra no encontro GreenBeat 2009, realizada em 19/11/09 em San Mateo (Califórnia), Al Gore defendeu que “a maior solução individual é eficiência, e a Super Grid, ou Smart Grid, desempenha um papel crucial em diversos aspectos de um plano abrangente para resolver a crise.” Segundo Gore, a Smart Grid terá muitas vantagens, pois, além de reduzir as emissões de carbono que aceleram o aquecimento global, vai nos propiciar maior acesso às fontes alternativas de energia (solar e eólica), e deverá nos equipar para lidar com a inconsistência dessas fontes. Como se não bastasse, a Smart Grid também deverá criar empregos, além de trazer uma melhor relação custo-benefício, a ponto de se pagar em pouco tempo ao propiciar ferramentas para prevenir ou minimizar falhas e apagões do sistema.
“A analogia com a internet é bem próxima à exata e muito relevante,” adicionou Gore. Tal qual a internet, a Smart Grid deverá nos levar de um modelo centralizado para um modelo amplamente distribuído de geração e armazenamento de energia, e isso deverá fustigar a criação de uma coleção inteiramente nova de dispositivos e de instrumentos que sequer foram inventados ainda – tal qual quando a internet surgiu. Assim, “quando os lares estiverem equipados com muitos desses aparelhos inteligentes e novos dispositivos que ainda têm que ser inventados, viveremos numa era em que o uso da internet por coisas excederá o uso da internet por pessoas.” Referindo-se à inteligência disponível nesses novos aparelhos, Al Gore prevê que ao lhes atribuir um endereço IP e conectá-los à smart grid simultaneamente ao emprego de estratégias para eliminar o desperdício de energia, estaríamos contribuindo decisivamente para uma redução de custos e do próprio aquecimento global.
Com uma proposta de se constituir numa conferência seminal sobre a Smart Grid, a GreenBeat 2009 reuniu empreendedores, investidores, empresas fornecedoras de energia, executivos do setor de tecnologia, e responsáveis por políticas públicas, com o objetivo de “acelerar o desenvolvimento de uma rede elétrica mais eficiente e mais enxuta”. Entre as questões mais provocativas discutidas no evento, aparecem: As iniciativas de medição inteligente da Smart Grid mudarão o comportamento do consumidor, e, em caso positivo, de que forma? Como os US$4 bilhões que o governo Obama pretende destinar para a Smart Grid farão a diferença? Onde acontecerá a maior revolução nesse negócio trilionário que não muda há décadas? De que forma gigantes corporativos e empresas de distribuição de energia tais como General Electric e Intel confirmarão sua dominação? Qual será o papel da cibersegurança e da interoperabilidade no desenho dessa nova rede elétrica?
É fato que a smart grid está rapidamente se transformando numa realidade nos EUA, na medida em que as empresas distribuidoras de energia elétrica têm intensificado a instalação de equipamentos de controle e monitoração em rede, tanto nas suas próprias plantas quanto nas residências dos consumidores. O ritmo dessas instalações deve acelerar devido a iniciativas recentes do Department of Energy e do governo do estado da Califórnia. (Em sua fala na GreenBeat 2009 Al Gore menciona que nas regiões de San Mateo e no norte da Califórnia mais de 10.000 medidores inteligentes estão sendo instalados a cada dia.)
Além da preocupação dos especialistas em segurança com a vulnerabilidade do sistema elétrico dos EUA a ataques cibernéticos em decorrência da conexão de sua rede elétrica à internet, especialistas em privacidade advertem que a smart grid podem trazer novas preocupações na medida em que as distribuidoras disponham de ferramentas para coletar informações detalhadas sobre os padrões de consumo de energia de seus clientes. A proliferação dessas informações, a ausência de controles rígidos e a supervisão insuficiente podem levar a invasões de privacidade sem precedentes.
“A modernização da grade elétrica aumentará o nível de detalhes de informações pessoais disponíveis assim como as instâncias de coleta, uso e divulgação de informações pessoais”, revela um relatório intitulado “SmartPrivacy for the Smart Grid: Embedding Privacy into the Design of Electricity Conservation” (“Privacidade Inteligente para a Smart Grid: Embutindo Privacidade no Desenho da Conservação de Eletricidade”), publicado pela Comissária de Informações e Privacidade do estado canadense de Ontario em parceria com a organização não-governamental Future of Privacy Forum. A intenção é reunir um amplo arsenal de proteções que deveriam ser implementadas como parte integrante das smart grids para encapsular tudo o que for necessário com vistas a assegurar que todas as informações pessoais que porventura estejam de posse de uma organização (como, por exemplo, uma distribuidora de energia) sejam administradas de forma apropriada. Desde o conceito de “privacidade por desenho”, passando por legislação, regulação e fiscalização independente, prestação de contas e transparência, forças de mercado, normas sociais, segurança de dados, e práticas honestas, tudo converge para um objetivo comum: garantir o direito à privacidade do cidadão dentro de sua própria casa. Argumentando que aqueles que deixam de vislumbrar os requisitos de privacidade no início do desenvolvimento da tecnologia, das práticas de negócio ou do espaço físico serão menos propensos a propiciar uma proteção abrangente, o relatório defende que, dado que a smart grid está em sua fase inicial de desenvolvimento, é hora de se levar em conta que a oferta ao consumidor do controle do seu consumo de eletricidade deve vir de mãos dadas com a oferta do controle de suas informações pessoais. Isso assegurará que a confiança do consumidor será conquistada, e que a participação na smart grid contribuirá para a visão de uma rede elétrica que seja não apenas mais amiga do meio ambiente e mais eficiente, mas também mais protetora da privacidade.
(Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE)
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