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terça-feira, 22 de junho de 2010

O Excedente Cognitivo e a Arquitetura de Participação


O Excedente Cognitivo e a Arquitetura de Participação

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Que grande diferença fez a internet no panorama das mídias? Clay Shirky oferece uma resposta: se a TV e o rádio trouxeram a comunicação por difusão, e o telefone incorporou a conversação à distância, a internet propiciou, pela primeira vez na história da humanidade, um veículo de comunicação que combina a conversação com a difusão. É como se o público alvo da difusão deixasse de ser apenas consumidor para assumir também o papel de produtor. Shirky, professor de Novas Mídias da New York University, é o autor de “Here Comes Everybody: The Power of Organizing Without Organizations” (The Penguin Press HC, 2008), que analisa o impacto das novas ferramentas de comunicação sobre a vida e os negócios na sociedade moderna: “quando mudamos a forma pela qual nos comunicamos, mudamos a sociedade”.
Uma das hipóteses de Shirky em seu mais recente livro intitulado “Cognitive Surplus: Creativity and Generosity in a Connected Age” (The Penguin Press HC, Junho 2010) é a de que grande parte do que se assumia como verdades inquestionáveis no século XX, tais como “a maioria das pessoas não quer produzir mídia”, “as pessoas não valorizam produções amadoras e caseiras”, e “ninguém se aventuraria a criar algo para o divertimento de outras pessoas a menos que fosse por dinheiro”, não são exatamente o que se pode chamar de verdades absolutas, mas sim acidentes da história. E a internet veio para desfazer esses acidentes ao tornar possível para um número cada vez maior de pessoas produzir e compartilhar artefatos de mídia. Com efeito, há décadas que a tecnologia estimula as pessoas a gastar seu tempo e seu intelecto como meros consumidores passivos. Com a chegada da internet, os recursos tecnológicos permitem dar vazão a um potencial humano, tanto de talento quanto de boa vontade, ainda não explorado. O fato é que após a Segunda Guerra Mundial alguns acontecimentos (aumento da renda per capita, do nível de educação, da expectativa de vida, do número de pessoas com jornada de trabalho de cinco dias na semana) fizeram com que a sociedade dos países industrializados impusessem a uma grande quantidade de seus cidadãos a tarefa de administrar algo que nunca tiveram que gerenciar em épocas passadas: tempo livre.
Shirky explica como a combinação do acréscimo do acesso à educação nos países industrializados e os avanços tecnológicos do século XXI deu origem ao que ele chama de “excedente cognitivo”, ou o potencial para esforços criativos cumulativos e de grante porte. É como se a urbanização da sociedade tivesse trazido como efeito colateral uma superabundância de intelecto, energia, e tempo. Mas essa abundância, argumenta Shirky, teve pouco impacto no bem comum porque a TV consumiu a maior parte. Como se não bastasse, consumimos TV passivamente, em isolamento uns dos outros. Hoje, talvez pela primeira vez, as pessoas aderem a novas mídias que nos permitem angariar os esforços coletivos a um custo cada vez mais insignificante. Os resultados desse esforço agregado vão desde ferramentas de ampliação do conhecimento como a Wikipedia a mecanismos de salvar vidas tal como o portal Ushahidi.com, que permitiu aos quenianos contornar a censura governamental e reportar sobre atos de violência em tempo real.
Qual seria o tamanho desse excedente? Tomando a Wikipedia como uma espécie de unidade, o projeto inteiro representaria algo como 100 milhões de horas de pensamento humano. E o volume representado pelas horas diante da TV? Segundo Shirky, isso representaria algo como 200 bilhões de horas somente nos EUA a cada ano. Em outras palavras, isso significa que se gasta o equivalente a 2.000 Wikipedias somente assistindo TV, isto é, o americano gasta 100 milhões de horas todo final de semana somente assistindo a propagandas na TV.
Curiosamente, ao invés de representar um desvio inesperado do comportamento “normal”, o aproveitamento desse excedente cognitivo na realidade significa um retorno a formas de colaboração que eram tão naturais no início do século XX. Procurando destacar os enormes efeitos que o excedente cognitivo, aliado às novas tecnologias, terá sobre a sociedade do século XXI, e de que forma se pode explorar ao máximo esses efeitos, Shirky projeta uma era de qualidade criativa mais baixa na média, mas, em compensação, de maior inovação, de maior transparência em todas as áreas da sociedade, e de um crescimento espetacular em produtividade que deverá transformar nossa civilização.
De modo geral, o fato concreto é que a internet facilitou a formação de comunidades em torno de interesses os mais diversos, os mais amplos ou os mais obscuros, tudo isso sem a necessidade de muito esforço e a custo muitas vezes insignificante ou mesmo nulo. Em particular, as chamadas mídias sociais (blogs, wikis, redes sociais) têm se revelado verdadeiras ferramentas que aos poucos transformam a ordem social com intensidade e alcance somente comparáveis aos da chegada da prensa de Gutemberg. É natural, no entanto, que devido a sua arquitetura de participação, a qualidade do que se publica na internet não corresponde à expectativa do que se imagina ser publicável, nos padrões da antiga arquitetura de passividade.
E aí é onde se apóiam os críticos. Conforme relata Nick Bilton em artigo recente publicado no New York Times (“The Defense of Computers, the Internet and Our Brains”, 11/06/10), há um debate e até mesmo uma preocupação em torno do preço mental que se paga por essa invasão do computador, da internet, e do fenômeno da multitarefa na vida contemporânea. Em seu livro mais recente (“The Shallows: What the Internet Is Doing to Our Brains”, W. W. Norton & Company, Junho 2010), Nicholas Carr, autor do polêmico artigo “Is Google Making Us Stupid: What the Internet is doing to our brains” (2008), defende que a internet, os computadores, a Google, o Twitter, e coisas do gênero, estariam nos tornando pensadores mais rasos e que a neurocircuitaria do nosso cérebro criada pela leitura de forma longa seria fundamental para que a sociedade funcione. A estrutura não-linear da web, com sua organização em forma de hipertexto que estimularia a leitura superficial, estaria nos tornando estúpidos.
Por sua vez, Maryanne Wolf, diretora do “Center for Reading and Language Research” da Tufts University, e autora do livro “Proust and the Squid: The Story and Science of the Reading Brain” (Harper, 2007), argumenta que o cérebro nunca teria sido concebido para desempenhar o ato de leitura, e que se preocupa com os efeitos do uso de narrativas audio-visuais (tão comuns na web) nas crianças pois, segundo ela, embora o cérebro não tenha sido feito para ler, não se deve desprezar o papel da circuitaria de leitura no desenvolvimento e na cognição da criança.
Em tom dissonante, Steven Pinker, cientista da cognição e professor de psicologia de Harvard, defendeu em artigo de opinião publicado no New York Times (“Mind Over Mass Media”, 10/06/10) que o recente alarde não é nada de novo. Segundo Pinker, o mesmo ocorreu após a invenção da máquina de imprimir, dos jornais, dos livros de capa mole, e da própria televisão.
Lembrando que as mídias digitais têm barateado e globalizado a criação e a disseminação de texto, som e imagens, Shirky, em ensaio intitulado “Does the Internet Make You Smarter?” (Wall Street Journal, 04/06/10), admite que a grande parte do que se publica é hoje criado por pessoas que pouco entendem dos padrões e práticas profissionais para a mídia. “Ao contrário, esses amadores produzem fluxos intermináveis de mediocridade, corroendo normas culturais sobre qualidade e aceitabilidade, levando a previsões cada vez mais alarmantes de um caos incipiente e um colapso intelectual.” Segundo Shirky, isso sempre acontece: todo aumento na liberdade de criar ou consumir mídia, desde os livros de capa mole até o YouTube, causa alarme nas pessoas acostumadas às restrições do antigo cenário, levando-as a concluir que as novas mídias vão tornar os jovens estúpidos. Esse tipo de receio não é nada de novo: já estava presente na época de Gutemberg.
O fato é que vivemos uma explosão na capacidade de publicação, tudo isso devido à mídia digital que conecta mais de um bilhão de pessoas. E, afirma Shirky, “essa conectividade nos permite acessar um excedente cognitivo da ordem de 1 trilhão de horas por ano de tempo livre que a população educada dispõe para fazer coisas que lhe interessa.” E, verdadeiramente, o desvio de uma minúscula fração do tempo gasto diante de uma TV pode trazer efeitos extremamente positivos.
 
Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE

terça-feira, 1 de junho de 2010

Recursos Educacionais Abertos e a Abertura no Ensino Superior


Recursos Educacionais Abertos e a Abertura no Ensino Superior

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O setor de serviços financeiros tem sido alvo constante de disrupção por revoluções tecnológicas que introduzem novas tecnologias para lidar com a informação, desde a invenção do telégrafo até as redes de acesso bancário a partir de smartphones. De forma semelhante, a indústria fonográfica assim como a indústria do cinema têm sido forçadas a enfrentar mudanças radicais desde quando a informação uma vez codificada em vinil, fitas magnéticas, e depois discos a laser, passou a se desvencilhar de um meio físico e assumiu para si mesmo a constituição especial de dados digitais intangíveis, passíveis de serem copiados e livremente distribuídos. Informação também se constitui no ingrediente chave da atividade fim das instituições educacionais, sobretudo as de ensino superior engajadas em atividades de pesquisa, na medida em que, por força de missão, criam e disseminam conhecimento. É de se perguntar o quanto o setor de educação superior tem sido afetado pelas mesmas forças que transformaram outros setores como o de serviços financeiros, a música, e o filme.
Conforme relatório recente intitulado “Harnessing Openness to Improve Research, Teaching and Learning in Higher Education” (2009), produzido pelo “Digital Connections Council” do “Committee for Economic Development” (CED), tem havido mudanças porém a um ritmo bem mais lento, particularmente no que diz respeito ao ensino e ao aprendizado. E o ritmo mais lento não se deve à possível ausência de inovação tecnológica, mas sim à resistência a um maior grau de abertura no acesso e na produção de material educacional. Se, por um lado, o grau de abertura dos setores de serviços financeiros e da indústria de mídias tem aumentado por força das transformações tecnológicas disruptivas, por outro lado, ainda há um enorme potencial a ser explorado através do uso de material digital, tanto para alunos quanto para professores. Uma maior ênfase no desenvolvimento dos chamados “recursos educacionais abertos” (em inglês, “open educational resources”, abrev. “OER”) pode trazer ganhos significativos no rendimento e no alcance tanto do ensino quanto do aprendizado.
Segundo a Wikipedia, o termo “open educational resources” foi primeiro adotado em 2002 pela UNESCO no “Forum on the Impact of Open Courseware for Higher Education in Developing Countries” financiado pela William and Flora Hewlett Foundation. OER’s são oferecidos livre e abertamente para que qualquer um possa usar e, sob licenças específicas para cada caso, remixar, melhorar e redistribuir. Exemplos mais conhecidos de OER’s são os OpenCourseWare (OCW) produzidos e disponibilizados gratuitamente pelo MIT.
A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) define um OER como: “material digitalizado oferecido livre e abertamente a educadores, estudantes, e autodidatas para uso e reuso no ensino, no aprendizado e na pesquisa, incluindo conteúdo, ferramentas de software para desenvolver, usar, e redistribuir conteúdo, e recursos de implementação tais como licenças abertas.” A bem da verdade, o termo OER se refere a uma ampla gama de material, desde cursos completos a módulos da magnitude de um exercício, de vídeos de aulas a cursos na íntegra, de livros-texto a material de leitura. Um OER pode incluir jogos, enciclopédias, imagens e videos, podendo ser disponibilizado online ou através de um mecanismo de distribuição física ou em broadcast. Em se tratando de material digital, OER’s trazem consigo toda a inerente maleabilidade dos objetos digitais.
É de se esperar que, com base na conectividade da internet, o acesso a conteúdo atualizado e de alto nível se consolide como de grande alcance não apenas geográfico, mas sobretudo social. E, contando com a interatividade da chamada Web 2.0, abre-se a possibilidade de participação numa escala global. Some-se a tudo isso a chegada de estudantes da geração dos “nativos digitais” aliada à transformação da internet passando de um meio de acesso à informação para um elemento fundamental de uma cultura participativa que incentiva cada indivíduo a dar sua própria contribuição, e tem-se aí uma receita para se colher frutos de uma atitude de maior abertura por parte de instituições de ensino superior, seja ela pública ou privada.
Não se espera que os OER’s substituam por completo os materiais educacionais proprietários que, aliás, têm se tornado cada vez mais digitais. São várias as questões que ainda pairam sobre os OER’s, a começar pela assimetria entre produtor e consumidor: ao invés de guiada somente pela oferta, a produção deveria ser igualmente tracionada pela demanda. Além do mais, há que se criar mecanismos de medição do impacto do uso de OER’s assim como ferramentas de participação livre, tais como as que dão suporte às wikis. No plano conceitual, é preciso repensar as regras que determinam os protocolos de acesso correspondentes aos direitos autorais de forma a dar espaço para que o fenômeno da inteligência coletiva funcione em favor do desenvolvimento e atualização constantes dos OER’s. Da mesma forma que abordagens à sustentabilidade estão sendo desenvolvidas para dar suporte a software de código aberto e a revistas científicas de acesso aberto, será preciso criar um arcabouço que venha a assegurar o desenvolvimento e a distribuição sustentáveis de OER’s de alta qualidade, livres, academicamente rigorosos, e pedagogicamente íntegros.
A palavra chave é, sem dúvida, abertura. Elliot Maxwell, coordenador do projeto do CED que culminou com o relatório supramencionado, afirma que “a criação e o uso de OER’s reforça a visão do aprendizado como uma atividade social colaborativa e ilustra o potencial para se produzir novos e ‘customizáveis’ materiais educacionais disponíveis onde quer que a internet alcance.” É como se os OER’s se configurassem como a força por trás de uma maior abertura no ensino superior.
Em palestra recente no Berkman Center (Harvard) intitulada “Openness: How Increasing Accessibility and Responsiveness Can Transform Processes and Systems” (11/05/10), Maxwell começa lembrando que o termo “aberto” tem sido usado em muitos contextos – código aberto, padrões abertos, acesso aberto, arquitetura aberta, espectro aberto – e chama à atenção para a influência da cultura participativa da internet interativa na caracterização contemporânea do que seria “abertura” num contexto mais amplo. De que forma modelos abertos se distinguem de modelos mais tradicionais, e qual seria o verdadeiro apelo da abertura? No final das contas, a palestra analisa o quanto que a tecnologia da informação e a internet têm propiciado maior abertura, além de abrir espaço para uma nova teoria de valor baseado no uso e no compartilhamento, tudo isso sem esquecer os problemas associados a uma maior abertura, tampouco o quão a abertura pode servir como uma lente para examinar assim como uma ferramenta para promover uma reengenharia de domínios institucionais e de políticas.
 
Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE