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segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O direito de acesso a obras digitais


O direito de acesso a obras digitais

DOM, 09 DE OUTUBRO DE 2011 23:03



O projeto de lei de combate à pirataria online em tramitação no Congresso Americano intitulado “PROTECT Intellectual Property Act” (PIPA), de autoria do Senador Patrick Leahy, e apoiado pela indústria do entretenimento, foi duramente criticado numa carta enviada em Setembro/2011 aos legisladores por mais de 100 empreendedores da área de tecnologia da informação, entre eles os fundadores de empresas como Twitter, LinkedIn, Zynga, Blogger, e Friendster. Se aprovado, o projeto daria novas ferramentas ao Departamento de Justiça e aos detentores de direitos autorais para combater sites “dedicados a atividades infratoras”, incluindo a capacidade de buscar ordens judiciais tomando os nomes de domínio dos sites e exigindo que engenhos de busca, empresas de processamento de transações financeiras e redes de anunciantes os incluam em listas negras.
Muito embora não se opondo ao objetivo principal do PIPA, os signatários se declaram preocupados com o efeito nefasto que a lei poderia causar no ecossistema de inovação da Internet. “Enquanto que o projeto deverá criar incerteza para muitos negócios legítimos e, por sua vez, minar a inovação e a criatividade naqueles serviços, os piratas dedicados que usam e operam sites ‘falsos’ vão simplesmente migrar para plataformas que ocultem suas atividades”.  Uma das maiores preocupações dos empreendedores é o malefício que poderá trazer a startups, pois o PIPA não prevê, como faz o Digital Millennium Copyright Act (1998), a isenção de empresas de veiculação de conteúdo produzido por usuários, sites de processamento de pagamento, empresas da indústria do anúncio online, assim como de ferramentas de localização, da responsabilidade por atos de infração de direitos autorais eventualmente perpetrados por seus usuários. Isso sem falar no grau de imprecisão na definição do que significa um site “dedicado a atividade infratora”.
A carta dos empreendedores conclui chamando a atenção para o fato de que a Internet e as novas tecnologias podem até ser um problema para os criadores, mas, também podem ser a solução: “Introduzir novas armas regulatórias na corrida armamentista contra a pirataria não vai parar a corrida, mas vai garantir que haverá mais danos colaterais no percurso. Há certamente desafios para o sucesso como criador de conteúdo online, mas as oportunidades são muito maiores que os desafios, e a melhor maneira de lidar com esses últimos é criar mais dos primeiros.”
Como diz Larry Downes em seu artigo “Leahy's Protect IP Act: Why Internet content wars will never end” publicado no portal Forbes.com em 16/05/2011, todos concordam que as indústrias de mídia estão no meio da guerra mais importante de suas vidas. Seus negócios se baseiam na lucratividade sobre a distribuição controlada de bens de informação cujas cópias têm um custo marginal que continua caindo e chegando muito próximo de zero. Não obstante, novos aplicativos “matadores” (“killer apps”, em inglês) continuam aparecendo, e cada um deles vem com um novo desafio aos detentores de direitos autorais para manter o controle: BitTorrent, computação em nuvem, YouTube, Limewire, Napster, e Google Books, todos foram considerados os grandes vilões e os principais inimigos até quando surgiu o próximo. No final das contas, tudo indica que o verdadeiro inimigo é a própria Internet: a incrível capacidade da tecnologia digital de reduzir os custos de transação das trocas de informação tem sido implacável com os modelos de negócio, e às vezes com os próprios negócios. O controle sobre cópias parece cada vez mais fugidio, mas a guerra continua: litígio judicial, legislação, processo sobre patentes, marcas, licenças, etc., tudo isso envolvendo, por um lado, entidades representativas da indústria tais como RIAA e MPAA, assim como editoras e jornais, e, por outro lado, os próprios consumidores.
A guerra tecnológica é intensa: se, por um lado, as indústrias de conteúdo criam mecanismos criptográficos e sistemas de gerenciamento de direitos digitais, a Internet oferece ferramentas cada vez mais poderosas de compartilhamento da informação, desde as redes peer-to-peer até tecnologias de jailbreaking que contornam os mais sofisticados controles sobre “cópias” compradas ou alugadas.
Poder-se-ia perguntar, como assim o faz Downes, por que os combatentes nessa guerra estão sempre dispostos a recorrer a táticas cada vez mais incompletas, ineficazes e perigosas, mesmo sabendo que suas chances de ganhar são ínfimas?  O que ocorre é que a Lei é frequentemente o ultimo refúgio de uma indústria em transição: ao invés de mudar para acompanhar a evolução dos tempos no ritmo que a inovação assim o permite, os incumbentes da indústria recorrem a processos judiciais, inicialmente para tentar diminuir o ritmo do progresso, e depois simplesmente para tentar sobreviver. Trata-se de uma decorrência de um inevitável e devastador princípio que Downes, em seu livro “The Laws of Disruption: Harnessing the New Forces that Govern Life and Business in the Digital Age” (Basic Books, 2009), chama de “Lei da Disrupção”, e que explica a resistência à mudança: sistemas sociais, políticos, e econômicos evoluem incrementalmente, enquanto que a tecnologia avança a um ritmo exponencial.
Para a distribuição da informação sob forma de mídia, as poucas porém cruciais leis que protegem e perpetuam a moribunda versão analógica da indústria são as chamadas leis da “propriedade intelectual”. Essas leis garantem os monopólios sobre a distribuição de mídia digital através da imposição de sanções civis ou penais. Nesse sentido, elas apenas criam artificialmente direitos temporários de propriedade sobre criações intangíveis: expressão (copyright), idéias (patente) e de marcas (trademark). Ao tratar a informação como se fosse propriedade, a lei permite que escritores, inventores e os comercializadores definam os termos sob os quais eles vão poder recuperar seus investimentos na criação de novas informações sempre equilibrada pelas necessidades de uma sociedade democrática com vistas a garantir que o acesso às novas informações seja tão livre quanto possível.
Em seu tratado “Access-Right: The Future of Digital Copyright Law” (Oxford University Press, Dezembro 2010), Zohar Efroni examina as relações entre o acesso à informação e a proteção aos direitos autorais com especial ênfase no chamado “mundo da informação digital”. Trata-se de um estudo de temática extremamente atual em torno do acesso e do controle de acesso sob a lei do copyright. Lembrando que, em 1994, John Perry Barlow, fundador de uma das mais atuantes entidades de defesa dos direitos civis na Internet, a Electronic Frontier Foundation, e autor da “Declaração de Independência do Ciberespaço”, já previa a queda da lei do copyright como a conhecemos hoje, Efroni chama a atenção para o fato de que, em sua crítica, Barlow descrevia a lei da propriedade intelectual no ambiente digital online como um navio afundando. Essencialmente, o argumento de Barlow era que os construtos legais tais como a lei do copyright se baseavam na existência de certas condições físicas e limitações que eram predominantes no mundo analógico, mas que não mais existem no ciberespaço. No espaço digital, a informação estaria supostamente liberada das “garrafas” tangíveis nas quais tinham sido trancadas por séculos. Com efeito, a informação está sendo transfigurada para “condições de voltagem fluindo na rede à velocidade da luz, em condições que se pode contemplar de fato, como pixels brilhantes ou sons transmitidos, mas não se pode tocar ou se pode reivindicar propriedade sobre elas no sentido antigo da palavra.” Barlow previa que a proteção dos ativos intelectuais no ambiente em rede seriam baseados muito mais na ética e na tecnologia do que na lei.
O fato é que tomar como base para o copyright o conceito de acesso digital primeiramente demanda uma fundamentação sobre os componentes básicos do controle de acesso proprietário sobre a informação no abstrato. Em seu livro, Efroni faz um extenso levantamento sobre os desenvolvimentos recentes no direito positivo, ao mesmo tempo em que mostra como o construto teórico do direito-de-acesso poderia explicar a lógica por trás desses desenvolvimentos. Em suma, o livro analisa de forma crítica as abordagens existentes à eliminação dos problemas resultantes do desequilíbrio e do excesso de proteção que supostamente deixam os usuários em desvantagem. Ao fim, ao cabo, Efroni defende a necessidade de uma reforma estrutural radical dos aparatos reguladores atualmente vigentes que envolva uma série de mudanças nos modos com que definimos os direitos autorais, e nas maneiras pelas quais esses direitos possam se interrelacionar dentro de um esquema coerente único.
Um projeto de pesquisa em andamento no Centro de Informática da UFPE busca dissecar minuciosamente a teoria proposta por Efroni, com vistas à obtenção de um melhor entendimento da problemática do direito de acesso a obras digitais.

Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE

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