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sexta-feira, 20 de maio de 2016

Desobediência civil eletrônica e seus fatores de efetividade

Desobediência civil eletrônica e seus fatores de efetividade

Maio 19, 2016

Baseando-se na premissa de que as Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs), assim como a Internet, constituem, nas palavras de M. Castell (The network society, 2005), a “espinha dorsal da sociedade em rede”, as relações de poder na sociedade e as práticas institucionais devem se estender ao ambiente digital interligado. A ampla difusão dessas tecnologias transformou definitivamente o processo de interação entre os indivíduos, a participação na vida civil e, por conseguinte, as experiências na esfera social.

Nesse contexto, conceitos como o de engajamento civil permeiam a discussão atual no que diz respeito ao papel das TICs no cenário político mundial. Para E.Gordon, J.Baldwin-Philippi e M.Balestra (Why We Engage: How Theories of Human Behavior Contribute to Our Understanding of Civic Engagement in a Digital , 2013), o conceito de Engajamento Civil incorpora todas as formas pelas quais os cidadãos se envolvem com questões da vida pública, o modo como eles se associam e cooperam com assuntos e contextos que transcendem as fronteiras da vida privada e atingem a esfera coletiva. Essa questão se torna ainda mais relevante quando relacionada aos Direitos Humanos, considerando que o engajamento civil tem papel fundamental na luta global por liberdades e direitos individuais. Torna-se, portanto, importante compreender como a Internet, a maior rede global de computadores, se inter-relaciona com o engajamento civil, a mobilização e a colaboração de indivíduos ao redor do mundo.

A ideia da “Polis Paralela” (Parallel Poleis) defendida por T.Lagos, T.Coopman e J.Tomhave ("Parallel poleis": Towards a theoretical framework of the modern public sphere, civic engagement and the structural advantages of the Internet to foster and maintain parallel socio-political institutions, 2013) aponta novas formas de autoorganização e atividade coletiva. Para os autores, o aparecimento dessas novas formas de organização social, baseadas em redes de indivíduos e comunidades, sugere mudanças na configuração do exercício político e a emergência de instituições sociais alternativas. Essa nova configuração abre espaço para múltiplos movimentos políticos ao redor do planeta, como o Movimento Zapatista no México, a Primavera Árabe no Oriente Médio, o Movimento Occupy Wall Street nos EUA, a Revolução Orange na Ucrânia, o Movimento Indignado na Espanha, o Movimento Anti-austeridade na Grécia, entre outros. Ademais, compreender o engajamento civil na Internet envolve conceber o mundo, e tais movimentos sociais, em uma dimensão global, a qual se estende para além das fronteiras territoriais, políticas, sociais e econômicas de cada país.

Compreender essa nova perspectiva de ação social, resolução de problemas e autoexpressão implica em identificar e analisar fatores que intervêm na forma de interagir com o ambiente social através de ferramentas baseadas na Internet. Considerando a relevância da temática, urge fomentar a discussão dos contextos onde floresce a cultura ativista na rede interligada proporcionando, assim, um melhor entendimento sobre suas características específicas e perspectivas globais. Nesse sentido, cumpre refletir sobre questões e fundamentos da chamada Desobediência Civil Eletrônica (DCE), uma das múltiplas práticas de “Hacktivismo” e participação política no ambiente digital, buscando ainda identificar, nestas experiências, os fatores que favorecem um resultado efetivo dessa forma de ação em determinados contextos.

As novas Tecnologias da Informação e Comunicação vêm transformando os processos de participação social na vida pública, ampliando as possibilidades de debate, de organização social e de ação política no cenário contemporâneo. Observações convergentes sobre o tema são relatadas por vários autores.

M. Bala (Civic Engagement in the Age of Online Social Networks, 2014) sugere que, com o advento de um novo cenário midiático, as formas de aquisição e disseminação de informação, assim como os espaços de deliberação e as alternativas de atuação na vida civil passam por fortes transformações, modificando essencialmente o processo de comunicação na vida pública.

Analisando as oportunidades oferecidas por essas novas tecnologias, Gordon, Baldwin-Philippi e Balestra (2013) observam que o desenvolvimento e a convergência das tecnologias em rede permitiram às pessoas se conectar e interagir em uma ampla variedade de formas - diferentes e, mesmo, contraditórias. O alto grau de acessibilidade e a ampla disseminação de formas de comunicação baseadas na Internet têm criado possibilidades para que os indivíduos explorem, avaliem, apreendam e coordenem informação de maneira cada vez mais eficiente.

L. Cook (Futurology: Internet and Civic Engagement, 2014) atenta para as possibilidades de conexão que a Internet oferece, independente das distâncias, encorajando o contato entre os indivíduos e propiciando um envolvimento até então desconhecido. Para M.Sauter ("LOIC Will Tear Us Apart": The Impact of Tool Design and Media Portrayals in the Success of Activist DDOS Attacks, 2014), na medida em que a Internet diminui a dificuldade de conexão entre indivíduos através da dissolução de diversas fronteiras e barreiras pertencentes ao mundo físico, ela também permite que o ativismo ocorra em escalas e distâncias nunca antes vistas, promovendo interações entre indivíduos e entidades antes impossíveis.

Essa nova realidade também é reconhecida pela International Telecommunication Union of United Kingdom (2013), a qual aponta que, durante as últimas duas décadas, a Internet trouxe um conjunto de oportunidades e avanços para as sociedades e economias em todo o planeta. Além disso, uma série de benefícios é atrelada a essas tecnologias, como a promoção de colaboração entre usuários, a transparência e a democratização do acesso de bilhões de pessoas a comunicação, educação, informação e entretenimento. Dessa forma, o papel da Internet como base tecnológica para um novo paradigma de organização social é de considerável importância. As possibilidades de abordagem, sobre o uso dessa tecnologia e suas ferramentas, oferecem uma multiplicidade de aspectos que podem ser explorados.

Para Y.Benkler (The Wealth of Networks, 2006), essa nova economia em rede empodera indivíduos a partir de três perspectivas: (1) aumenta a capacidade de trabalho em causas individuais e coletivas; (2) amplia as práticas colaborativas, desvencilhando-se de sistemas sociais, e econômicos, tradicionais e hierárquicos; e (3) potencializam a capacidade de organização formal fora da esfera de mercado.

Assim, a popularização da ideia de colaboração entre indivíduos e a própria fluidez que transcende as fronteiras geográficas ampliam o espectro das relações e oferecem mais qualidade às possibilidades de cooperação.

O novo paradigma de comunicação e as novas possibilidades de expressão, baseados na Internet, refletem em um empoderamento que se manifesta na vida cotidiana da esfera offline, contribuindo para que os cidadãos tenham um maior controle sobre a sua realidade. Em suas considerações sobre o tema S.Banaji e D.Buckingham (Young People, the Internet, and Civic Participation: An Overview of Key Findings from the CivicWeb Project, 2010) também sugerem que a Internet oferece um valioso suporte às minorias políticas, de gênero, regionais, étnicas e religiosas, proporcionando, inclusive, um espaço de questionamentos e de legitimação da identidade e dos costumes, de debate dos significados da cultura e da cidadania, e de discussão de abordagens colaboração e protesto. M. Gohn (Sociologia dos Movimentos Sociais, 2012) considera que essa nova realidade tem dado voz e ampliado espaços para sujeitos sociopolíticos inéditos, historicamente excluídos de participar de ações e processos de seu interesse. A realização de protestos na Internet permite aos grupos de interesse social angariar suporte público, promover maior exposição e, consequentemente, experimentar o poder decorrente das novas formas de participação.

A Internet, as mídias alternativas e as organizações baseadas na rede têm expandido drasticamente o acesso a informações políticas relevantes, além de oferecer aos cidadãos novas possibilidades de aprendizagem, uma maior variedade de recursos e formas inovadoras de ação. Para A.Calabrese (Virtual nonviolence? Civil disobedience and political violence in the information age, 2004), na medida em que novas tecnologias são introduzidas nas possibilidades de discurso e ação política, atores políticos radicais passam a testar os limites de sua imaginação, inventando novas formas de uso para essas tecnologias a fim de alcançar avanços na luta pelas causas que defendem. Ademais, Y.Benkler (Social Mobilization and the Networked Public Sphere: Mapping the SOPA-PIPA Debate, 2014) aponta que a Internet deverá emergir na forma de uma esfera pública digital, convidando ao debate e à argumentação de uma forma mais diversa, multifacetada e participativa do que a conservadora e limitada discussão utilizada pelo paradigma "broadcast". Assim, as novas formas de flexibilidade organizacional, e eficiência, fornecidas pelas TICs aumentam, para as comunidades, o poder de influência sobre processos políticos, subvertendo o modelo tradicional de campanha e abrindo espaço para um novo tipo de engajamento civil de nível popular.

Vários autores têm se debruçado sobre o tema. Bala (2014) aponta como a Internet e as TICs são capazes de transformar não apenas a motivação dos indivíduos, mas o contexto onde se promovem ações e mudanças sociais. O papel da Internet em uma extensa lista de eventos, como, por exemplo, aqueles relacionados à Primavera Árabe têm levantado muitas discussões na atualidade e mostram o crescente interesse na correlação entre tecnologias digitais e movimentos sociais. Nesse contexto, Banaji e Buckingham (2010) consideram que a informação, assim como as TICs e os websites cívicos, pode ser utilizada a fim de promover a conscientização da cidadania e o desenvolvimento de abordagens mais comprometidas de educação cívica. Estudando o engajamento civil e político no sudeste asiático, W.Zhang e E.Lallana (Youth, ICTs,
and Civic Engagement in Asia, 2013) buscaram identificar padrões e compreender as causas desse fenômeno.

Analisando a participação dos jovens neste novo cenário e considerando a importância do desenvolvimento de formas mais inteligentes e efetivas de participação social, Lagos, Coopman e Tomhave (2013) reiteram a necessidade de estudar a relação entre a participação online e a ação e comprometimento político no mundo offline. Portanto, compreender o significado real do engajamento civil constitui uma etapa fundamental para a identificação dos processos, formas e motivações pelas quais os indivíduos se engajam em movimentos, campanhas e atividades.

Observa-se que o uso de ações “Distributed Denial of Service” (DDoS) (“Negação de Serviço Distribuída”), como tática de protesto, evoluiu na medida em que a identidade política da Internet cresceu e tornou-se mais complexa. Contudo, Sauter (2014) observa que, para que o uso dessa prática possa ser melhor compreendido, faz-se necessário compreendê-la no contexto geral da cultura de ativismo digital. Por conseguinte, o entendimento das práticas de ativismo disruptivo e desobediência civil eletrônica demanda uma elucidação da participação da Internet enquanto plataforma vital de comunicação, autoexpressão e organização social.

Cigler et al. (1991) observam que, no contexto dos movimentos anticorporativos, o impacto das ações de um grupo de cidadão geralmente é considerado o ponto mais difícil de avaliar na análise da efetividade de grupos de interesse organizados. Segundo Davidson et al. (1995), grupos ativistas offline e as empresas-alvo que representam seu alvo discordam sobre as taxas de sucesso de boicotes em larga escala e/ou outras táticas de protesto offline. Portanto, de forma semelhante às táticas de protesto no mundo físico, quantificar ou estimar a efetividade de táticas de protesto online não é fácil.

K.Martin e B.Kracher (A Conceptual Framework for Online Business Protest Tactics and Criteria for Their Effectiveness, 2008) relatam que, de um lado, alguns afirmam que táticas de protesto DoS não são efetivas, sendo uma perturbação, mais do que qualquer coisa (CNN Webmaster, Personal Communication). Do outro lado, existem evidências de que empresas responderam positivamente a protestos online, sugerindo que pelo menos alguns desses protestos tenham tido sucesso. Mahon (2002) observa que, ultimamente, vem sendo demonstrado na literatura que uma gama de questões políticas e sociais, como aquelas representadas pelas táticas de protesto online, podem ter um impacto profundo nas empresas e, portanto, demandam uma atenção gerencial minuciosa.

Considerando estas questões, Martin e Kracher (2008) propõem dois níveis de sucesso para um dado protesto online. Primeiro, sugere-se que as táticas de protesto online podem ser classificadas como efetivas se elas alcançarem seu objetivo principal. Sendo assim, o objetivo final de qualquer protesto anticorporativo é provocar uma mudança em políticas e/ou práticas de negócio indesejáveis. Segundo, mesmo que um protesto anticorporativo online não mude a prática de uma instituição, este pode ser considerado um meio efetivo de capturar a atenção dos seus líderes, alcançando-se uma efetividade intermediária.

Entendendo a relevância e a necessidade de estabelecer abordagens de engajamento e de protesto online que transcendam as fronteiras do mundo físico, se torna necessário, portanto, compreender quais variáveis intervenientes devem estar ajustadas para que tais ações alcancem o máximo de efetividade. A literatura evidencia, dessa forma, a existência de cinco fatores que, quando combinados, resultam em uma maior reverberação do resultado desse tipo de abordagem, contribuindo para a disseminação da agenda ativista sobre um maior número de indivíduos e obtendo, assim, um maior protagonismo na sociedade. Tais fatores são: a cobertura midiática da ação, o nível de disruptura provocado pela ação, o suporte angariado dentro dos diversos setores da sociedade, a existência de ações offline coordenadas às ações online e a forma de organização e comunicação horizontalizada.

Oferecendo novas oportunidades para o engajamento civil e político a indivíduos ao redor do mundo, a Internet vem contribuindo ativamente para a construção de novas propostas de atuação e de intervenção das bases populares. Indo de encontro ao paradigma de comunicação “de um para muitos”, a nova forma de interação, “de muitos para muitos” trazida pelas TICs dinamiza o discurso e o debate popular trazendo formas mais democráticas de diálogo entre os diversos setores da sociedade.

Tais transformações, capazes de impulsionar a coordenação e a mobilização de indivíduos em torno de uma causa transcendendo fronteiras nacionais e espaciais, introduzem novos grupos na disputa por espaço políticos e/ou de poder no contexto social.

As mudanças introduzidas pela Internet, contudo, não beneficiaram apenas aqueles que lutam por causas coletivas, como também as elites de poder, as quais transitam entre estruturas sólidas e formas fluidas, tornando-se “invisíveis” àqueles aos quais domina. Assim, diante dessa nova dinamicidade dos fluxos de poder, tradicionais estratégias ativistas, tais quais ocupações e protestos, nas ruas e edifícios, tornam-se insuficientes para provocar disrupturas e abrir espaço para negociações. A Internet
deve tornar-se um palco de luta.

Diante dessa realidade, novas abordagens de protesto e de angariação de suporte social devem ser discutidas, visando desenvolver estratégias para a maior efetividade dessas ações. Dessa forma, torna-se essencial compreender em que medida, e de que formas, ações deflagradas no ambiente online podem provocar mudanças efetivas na
sociedade.

Compreendendo o alcance global, e o papel central da Internet, assim como das práticas de ativismo Hacker, dentro do panorama dos novos movimentos sociais, uma das perspectivas de trabalho futuras abarca o estudo e a validação de hipóteses relacionadas à adoção dessas abordagens dentro do cenário de brasileiro.

Assim, partindo do pressuposto de que o contexto nacional brasileiro apresenta características específicas, seja do ponto de vista histórico, seja dos pontos de vista socioeconômico e cultural, torna-se de essencial importância o enriquecimento da reflexão e da produção intelectual acerca das possibilidades de empoderamento, e emancipação, oferecidas pela rede.

Ademais, tendo em vista uma recente intensificação do debate político nas redes sociais, trazendo novas perspectivas na luta contra-hegemônica, como nos casos do Movimento Passe Livre (2013) e do Movimento Ocupe Estelita (2014), assim como uma expressiva migração do processo deliberativo para o ambiente online, faz-se necessário explorar novas abordagens e possibilidades, em observância com princípios éticos, dentro desse espaço.
(Texto extraído do Trabalho de Graduação em Sistemas de Informação (Centro de Informática da UFPE) da primeira autora sob orientação do segundo autor.)

Olga Proaños de Morais, Graduanda em Sistemas de Informação, Centro de Informática da UFPE

Ruy J.G.B. de Queiroz, Professor Titular, Centro de Informática da UFPE

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