Cuidados com a Saúde na Era da Internet Interativa
13 de outubro de 2009 - Em meio a um intenso debate sobre os rumos do sistema americano de assistência médica, destaca-se naturalmente o aspecto orçamentário: os gastos com assistência médica nos EUA chegaram à casa dos US$2,5 trilhões em 2008, representando 17,6% do PIB americano, e ainda crescendo a uma taxa de 150% do crescimento desse mesmo produto interno bruto.
Tanto para os indivíduos quanto para os empregadores, o custo da assistência médica tem se tornado um grande peso: alto custo e retorno insatisfatório. A verdadeira reforma na assistência médica deveria reduzir custo e melhorar os serviços, e, ao que parece, a indústria dos cuidados com a saúde é o último recanto onde as inovações tecnológicas podem trazer mudanças profundas e uma miríade de novos modelos de negócio, conforme argumenta Michael Yuan em matéria no portal VentureBeat intitulada “Will Health 2.0 startups usher in consumer-driven healthcare?” (“Será que as startups da Health 2.0 conduzirão a uma assistência médica guiada pelo consumidor”, 07/09/2009).
Em tempos de internet interativa (às vezes também chamada de “Web 2.0”, termo originalmente cunhado por Tim O’Reilly para indicar uma evolução da internet em seu formato original que não dispunha de mecanismos de interação), o termo “Health 2.0” tem sido utilizado para se referir a uma gama de conceitos relacionados que inclui telemedicina, prontuários médicos eletrônicos, e o uso da internet pelos próprios pacientes através de blogs, redes sociais, e outros sistemas de mensagem interativos. Embora sugestivo, o significado exato do termo “Health 2.0” não parece ser consensual entre os especialistas e participantes do “movimento”.
Para Matthew Holt e Indu Subaiya, fundadores da conferência de mesmo nome, cuja instância mais recente ocorreu em San Francisco no período de 06 a 07/10/09, a definição do termo deve focar os aspectos “gerados-pelo-usuário” da Web 2.0 dentro do contexto dos cuidados com a saúde, mas não interagir diretamente com o sistema de assistência à saúde já estabelecido. Tais aspectos seriam: (1) busca, (2) comunidades, (3) ferramentas para o uso de indivíduos ou grupos de usuários, embora haja fronteiras não muito precisas entre todos esses aspectos, e a questão de se conectar o conteúdo gerado-pelo-usuário da Health 2.0 ao sistema mais amplo de assistência médica está cada vez despertando maior interesse à medida que mais profissionais de saúde e organizações que atuam na área de assistência médica começam a utilizar essas tecnologias para se comunicarem com os consumidores.
Em “The Wisdom of the Patients – Health Care Meets Online Media” (“A Sabedoria dos Pacientes – Assistência Médica Encontra a Mídia Online”, Abril 2008), Jane Sarasohn-Kahn diz que o movimento Health 2.0 pode ser definido como “o uso de software social e suas capacidades para promover a colaboração entre pacientes, seus provedores de cuidados, profissionais de saúde, e outras partes interessadas em saúde”. Chamando à atenção para o poder da sabedoria coletiva, Sarasohn-Kahn lembra que quanto mais participantes uma rede social reúne, maior é o valor que eles criam. Esse seria o fenômeno dos efeitos de rede positivos, ao qual muitos se referem como aproveitamento da inteligência coletiva. Citando James Surowiecki que em seu livro “The Wisdom of the Crowds” (“A Sabedoria das Multidões”, Anchor, 2005) defende que “grupos são notavelmente inteligentes, e são frequentemente mais espertos que as pessoas mais espertas que deles participam”, Sarasohn-Kahn argumenta que os grupos não precisam ser liderados pelos mais espertos para que seja esperto, e que quando pacientes encarando a mesma condição crônica compartilham observações entre si, sua sabedoria coletiva pode levar a percepções clínicas muito além do entendimento de qualquer paciente ou clínico geral por si só.
De qualquer forma, talvez o mais importante aspecto da “Health 2.0” diz respeito exatamente ao fato de que o indivíduo assume a responsabilidade pelos cuidados da própria saúde, agindo de forma pró-ativa de modo a viver um estilo de vida mais saudável, ao mesmo tempo que dispõe de ferramentas que o ajudem a atingir esse objetivo. A internet hoje é certamente uma grande fonte de informações sobre saúde, mas o ideal, segundo especialistas, é combinar os dados do indivíduo com informações que permitam traçar um plano (ou vários) de cuidados com sua saúde conforme sua condição. É exatamente isso que se propõe a fazer uma ferramenta lançada recentemente, e amplamente aclamada pela blogosfera: a “Keas”.Elaborada por Adam Bosworth, que gerenciava o projeto Google Health, Keas é um portal que fornece planos de ação de cuidados com a saúde e o bem-estar personalizados, incluindo questionários de auto-avaliação e registros médicos. O usuário também pode compartilhar informações sobre qual tratamento funciona e quais os que não funcionam em comunidades auto-organizadas online. Usando o sistema Keas, por exemplo, uma pessoa com diabete tipo 2 pode receber lembretes, recomendações sobre dieta e exercícios, perguntas e lembretes apresentados no portal ou entregues por e-mail ou mensagens de texto, tudo isso personalizado conforme idade, gênero, peso e outras condições de saúde do indivíduo.
Segundo o verbete da Wikipedia, entre todas as variantes da definição de “Health 2.0”, há um conceito chave em comum que é o de que os próprios pacientes tenham entendimento e controle sobre as informações geradas sobre ele. Os modelos tradicionais de medicina registram o histórico do paciente em documentos ou sistemas computadorizados proprietários que podem ser acessados somente pelo médico ou profissional de saúde. O médico responsável (ou clínico geral) normalmente atua como um intermediário informando o paciente sobre os resultados de exames e diagnósticos na medida que julga necessário. Esse modelo opera relativamente bem em casos de cuidado agudo, onde a informação sobre resultados específicos do exame de sangue seriam inúteis para um leigo, ou na prática de clínica médica onde os resultados seriam em geral benignos. Entretanto, no caso de doenças crônicas complexas, distúrbios psiquiátricos, ou males de etiologia desconhecida, o paciente estaria sob risco de ser deixado sem o cuidado devidamente coordenado pois os dados sobre ele estariam armazenados em uma variedade de locais desconectados e que em alguns casos poderiam conter as opiniões dos profissionais de saúde que não eram para ser compartilhadas com o paciente. Há quem diga que a cada vez mais a ética médica considera tais ações como paternalismo médico e são desencorajadas na medicina moderna.
Ainda conforme o verbete, um exemplo hipotético serve como demonstração para o aumento no engajamento de um paciente operando num cenário Health 2.0: um paciente vai ao consultório de seu clínico geral com uma dada queixa, tendo primeiro assegurado que seu prontuário médico eletrônico esteja atualizado via internet. O medico pode imediatamente dar um diagnóstico, ou solicitar exames, cujos resultados podem vir a ser transmitidos diretamente para o prontuário médico eletrônico do paciente. Se uma segunda consulta for necessária, o paciente terá tido tempo de pesquisar sobre o que os resultados podem significar para ele, quais diagnósticos podem ser possíveis, e pode ter se comunicado com outros pacientes que tenham tido um conjunto semelhante de resultados. Possivelmente, nessa segunda consulta o clínico pode encaminhar o paciente a um especialista, e nesse caso o paciente terá a oportunidade de fazer uma busca em redes sociais especializadas sobre a opinião de outros pacientes a respeito de como escolher o melhor especialista para o seu caso, e em comum acordo com o clínico geral decidir a quem ir. Digamos que o especialista dê um diagnóstico juntamente com um prognóstico e as opções de tratamento. Nesse ponto o paciente tem a oportunidade de fazer uma pesquisa sobre essas opções de tratamento e assumir uma posição pró-ativa quando da tomada de decisão em conjunto com o médico da família, podendo também submeter ao sistema de busca mais dados sobre si mesmo incluindo um possível perfil genômico personalizado para identificar quaisquer fatores de risco que poderiam aumentar ou diminuir as chances de acerto do prognóstico. À medida que o tratamento se inicia, o paciente pode acompanhar o andamento do tratamento consultando uma comunidade de pacientes sob condições semelhantes para determinar se está havendo indícios de eficácia no seu tratamento, além de poder se manter atualizado com respeito a pesquisas recentes sobre sua condição médica. Como se não bastasse, através de redes sociais apropriadas, o paciente pode obter o apoio social inclusive de outros que sofrem ou sofreram da mesma condição em todo o mundo. É o que se poderia chamar de cuidados com a saúde “peer-to-peer” (“par-a-par”, ou “entre-pares”).
O fato concreto é que, se a tecnologia da informação, e em particular a internet, tem trazido mudanças importantes para diversos setores, ora cortando custos e propiciando ganhos de produtividade, ora favorecendo o aparecimento de novos paradigmas e modelos de negócio, ao que tudo indica, pode trazer tudo isso também para o setor da assistência médica. Tal qual tem ocorrido em outros setores (mídia, jornalismo, financeiro), a internet tem o poder de eliminar intermediários: como diz Steve Lohr em matéria recente no New York Times intitulada “A New Web Tool to Take Control of Your Health” (“Uma Nova Ferramenta Web para Tomar o Controle de Sua Saúde”, 06/10/09), muito embora o debate nos EUA tenha se concentrado em torno do como propiciar às pessoas mais acesso a médicos e hospitais, a grande maioria das decisões sobre os cuidados com a saúde (80% ou mais, dizem os especialistas) são tomadas pelos próprios indivíduos e não pelos profissionais de saúde, sejam escolhas sobre dieta e exercícios ou maneiras de lidar com condições crônicas como diabete e doença cardíaca. Há um consenso entre especialistas no sentido de que, no longo prazo, o caminho para se melhorar a saúde da população ao mesmo tempo em que se cortam custos é ajudar as pessoas a tomar decisões mais inteligentes no dia a dia sobre sua própria saúde. E aí entra em cena “a mais poderosa ferramenta na marcha em direção ao consumismo no cuidado com a saúde”, segundo Lohr: a web.
Além da frieza das cifras orçamentárias, surge um aspecto curiosamente paradoxal dos novos rumos do setor de cuidados com a saúde, mas que representa bem o estado de coisas nesse horizonte: ao mesmo tempo em que a tecnologia propicia maior responsabilidade individual na medida em que a tendência é passar o controle de seu prontuário médico para o próprio indivíduo, o ambiente de rede social oferece ao indivíduo o enorme potencial de aproveitamento da inteligência coletiva. Em sua matéria no NY Times, Lohr faz menção a pesquisas de opinião que mostram que a maioria dos adultos nos Estados Unidos rotineiramente esquadrinham a internet à procura por informações relacionadas à saúde. Em tom anedótico, os médicos comentam que, em geral, a segunda opinião sobre diagnóstico e tratamento tem sido invariavelmente uma busca no Google, com os resultados impressos e trazidos ao consultório médico. A propósito, em Abril passado, a Healthline Networks, uma espécie de “Google da saúde” que usa tecnologia de busca semântica para ajudar o usuário a entender seus sintomas e encontrar as melhores drogas para tratá-los, anunciou que, além dos melhoramentos às ferramentas SymptonSearch e DrugSearch, estava adicionando mais duas: TreatmentSearch e DocSearch. A idéia é que com essas novas ferramentas o usuário possa, não apenas descobrir por que não está se sentindo tão bem, mas também obter informações detalhadas sobre o que fazer para se sentir melhor. A empresa diz que a ferramenta TreatmentSearch inclui 4.500 opções de tratamento, divididas em 1.200 medicações e 3.300 terapias médicas, cirúrgicas e alternativas. Os dados vêm de fontes fidedignas entre as quais se encontra a Harvard Health Publishing. Com o engenho de busca da Healthline é possível também pesquisar num banco de dados de 1,3 milhões de médicos e até mesmo obter uma estimativa de custos do tratamento.
A bem da verdade, todos esses avanços na Health 2.0 receberam um enorme impulso desde que as gigantes Google (com o Google Health) e a Microsoft (com o HealthVault) decidiram entrar de vez no mercado, a primeira delas anunciando inclusive um acordo de interoperabilidade com a IBM, outra gigante da tecnologia e que detém alguns dos sistemas proprietários mais amplamente utilizados. No fundo, os prontuários médicos eletrônicos de segunda geração deixam de ser meros repositórios de dados, e passam a ser uma plataforma para agregação eletrônica de informações sobre a saúde do indivíduo. E, ao se tornarem plataformas essencialmente comandadas pelo indivíduo, mesmo que alimentadas por informações fornecidas por profissionais de saúde ou provedores de serviços de saúde (hospitais, clínicas, laboratórios), surgem questões de propriedade: a quem pertencem tais informações?
(Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE)
2 comentários:
Oi Ruy.
Tenho uma opinião muito bem formada sobre este assunto: o problema do modelo de saúde não tem nada a ver com Web e sua solução também não passa por ela, nem por startups.
O modelo de medicina está errado. Os prêmios não estão com quem mantém os pacientes mais saudáveis. Pelo contrário, o modelo serve para extrair (dos pacientes para o sistema médico) as economias amealhadas ao longo da vida.
Não se premia a manutenção da saúde, mas a cura de doenças que seria muito melhor não ter. É este o sistema que deveria ser mudado. E o que a internet tem a ver com isso?
E a própria noção de "cura" é falha e debatível. Muito melhor concentrar-se na prevenção, não importa se Heath 1.0, 2.0 com ou sem iteratividade.
Abraços
Marcelo Finger
Marcelo,
Obrigado pelo comentário, aliás muito pertinente!
A intenção do artigo não é sugerir que a Web interativa é a solução para os males da medicina contemporânea, mas para mostrar o quanto essa internet interativa está mudando a relação do cidadão com a própria medicina. E parece que a tônica é a mesma que prevalece em outros contextos (mídia, jornalismo, financeiro): a eliminação do intermediário.
Um abraço,
Ruy
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