Obscuridade Prática, Cidadãos Transparentes e o Estado de Direito
9 de fevereiro de 2010 - Enquanto a vida digital dispara num ritmo alucinante, o mundo real em todos os seus aspectos, desde a lei até os negócios, se esforça para acompanhar. Não apenas os estrategistas de negócios, mas sobretudo os advogados, os magistrados, os agentes reguladores, e até mesmo os cidadãos comuns parecem estar sendo atropelados na medida em que os avanços tecnológicos causam disrupção nas regras de convivência com as quais estão habituados. A bem da verdade, nem mesmo instituições consagradas como o Estado democrático de direito parecem estar livres do ritmo frenético com o qual a evolução tecnológica na era digital sacode alguns cânones da vida contemporânea. Em palestra recente no Berkman Center for Internet & Society (Harvard Univ) intitulada “Transparent Citizens and the Rule of Law” (“Cidadãos Transparentes e o Estado de Direito”, 01/02/2010), Joel Reidenberg explora a erosão das fronteiras entre a informação pública e a informação privada na internet. O argumento é de que a transparência de informações pessoais disponíveis online enfraquece o Estado de direito de três maneiras. Primeiro, a transparência de informações pessoais que são criadas por atividades do setor privado permite que o Estado recolha e use informações pessoais disponíveis em repositórios do setor privado de formas que acabam passando por cima de protocolos e normas legais e políticas. Em segundo lugar, a auto-ajuda técnica no desenvolvimento de infraestrutura de rede que busca assegurar anonimidade completa online pode vir a ser usada por indivíduos e grupos de modo a evadir a responsabilidade legal e o Estado de direito. E, finalmente, a transparência das informações pessoais põe em risco a segurança nacional e as instituições legais de forma que tende a minar a confiança no Estado democrático de direito.
Reidenberg começa lembrando que, numa democracia, a distinção entre o privado e o público é fundamental para seu bom funcionamento. Crítico para a prática democrática é o direito à privacidade e à intimidade, assim como a um certo grau de anonimidade. A noção de que um indivíduo tem uma autonomia na sociedade, um espaço próprio, existe em conformidade com a maneira pela qual a sociedade define as regras ou relacionamentos de privacidade. Por sua vez, as tecnologias da informação e comunicação nos propiciam um mundo fortemente interconectado no qual a distinção entre o público e o privado começa a se dissolver. Nesse ecossistema em rede existe a necessidade real de rastreamento de informações sobre indivíduos até mesmo para fazer cumprir funcionalidades da própria rede (como, por exemplo, a telefonia celular e a computação nas nuvens). A rede simplesmente não funciona sem que uma grande circulação de dados e um amplo rastreamento de indivíduos se realize.
Por outro lado, temos os dados públicos, o outro lado da moeda. Exemplos: dados da carteira de habilitação, da residência, de propriedades, de financiamentos imobiliários, de certos tipos de dívida. Com a expansão dos programas sociais do governo, que, de modo geral, necessitam da coleta de muitas informações sobre indivíduos, e a força da demanda por transparência na administração pública, a disponibilidade desses dados para o governo significa torná-los publicamente disponíveis.
Adicionalmente, é possível observar a pressão comercial cada vez maior para a coleta de informações pessoais para fins de marketing comportamental, e nesse caso as redes sociais aparecem como verdadeiros repositórios de informações pessoais. Em alguns casos há inclusive a pressão para rastreamento de geolocalização cada vez mais detalhada. Isso sem falar nos imperativos de segurança e prevenção de acidentes que conduzem a enormes coletas e disseminação de informações sobre indivíduos. Segundo Reidenberg, algumas dessas informações têm historicamente permanecido transparentes no sentido técnico, tais como os registros concernentes a empréstimos financiados por programas governamentais (crédito imobiliário, por exemplo), mas, do ponto de vista prático, eram obscuras pois para obtê-las era preciso ir a um tribunal. Hoje, para todos os efeitos, a maior parte dessas informações pode ser obtida com apenas um clique. É barato e fácil acessá-las. “Perdemos a obscuridade prática,” afirma Reidenberg. Engenhos de busca permitem o acesso a informações pessoais que, para todos os fins e propósitos eram privadas, a rigor não mais o são. Resultado: temos um cidadão bastante transparente na sociedade. E mais: ainda que alguns dados tenham passado por um processo de desassociação com os respectivos indivíduos, a reidentificação tem se tornado extremamente fácil com o uso de técnicas de mineração de dados.
Enfim, no ecossistema em rede começamos a fundir o eu público e o eu privado, e a distinção desaparece. O cidadão se depara com um verdadeiro complexo de monitoração de informações, e isso, acrescenta Reidenberg, se apresenta como um enorme desafio ao Estado de direito proveniente de várias direções. Aqui a referência ao Estado de direito se dá em termos bem gerais: limites que são estabelecidos por lei que são aplicáveis igualmente ao Estado e ao cidadão. “Tradicionalmente em democracias o Estado de direito impõe limitações à intrusão do Estado na privacidade do indivíduo. Porém, em função de toda essa transparência do cidadão, o Estado essencialmente dispõe de acesso a dossiês e ao rastreamento como nunca se viu antes,” acrescenta Reidenberg. Para o cidadão comum é espantoso tomar ciência de que governos como o dos EUA, por exemplo, principalmente após o ataque às torres gêmeas, têm utilizado o setor privado como fonte de informações sobre indivíduos, através de acordos de cooperação, sem que isso tenha ocorrido dentro dos protocolos e normas regidas pelo Estado de direito. Segundo Reidenberg, as fontes de informações para o programa de “Total Information Awareness” foram em grande parte adquiridas do setor privado. No passado, para que o Estado fosse capaz de perpetrar uma vigilância detalhada sobre o cidadão, seriam necessárias as devidas autorizações judiciais baseadas em causa provável, ou seria preciso que o Estado empregasse recursos financeiros vultosos para contratar um grande contingente de policiais que fariam o monitoramento intensivo, o que seria rejeitado pela sociedade. Hoje o cenário é bem diferente.
Diante desse contexto, Reidenberg defende que é preciso buscar uma forma de instanciar o Estado de direito nesse ecossistema em rede no qual a informação tem que fluir para que a rede funcione. Sua proposta passa pelo estabelecimento de uma norma para o mau uso de dados, e pela definição da noção de “conhecimento de propósito limitado”: quando uma informação é gerada no ecossistema em rede para um dado tipo de uso, ela é gerada para alguma espécie de propósito, e o conhecimento da informação para aquele propósito é apropriado enquanto que para outros propósitos é considerado mau uso. Na prática, a noção de conhecimento de propósito limitado se traduziria em trazer de volta para a rede a obscuridade prática. E o critério para se determinar se uma dada informação seria transparente para um certo propósito X seria baseado no conceito de “integridade contextual”, definido por Helen Nissenbaum, professora da New York University.
Segundo Nissenbaum, as práticas de vigilância pública estão entre os desafios mais controvertidos e menos entendidos no que diz respeito a privacidade na era das tecnologias da informação. A natureza fragmentária das políticas de privacidade nos países desenvolvidos, sobretudo nos Estados Unidos, reflete não apenas o embate de forças diametralmente opostas de interesses os mais diversos, mas também a ambivalência de intuições e analogias nem sempre felizes sobre fenômenos mundanos como TV de circuito-fechado e biométrica. Em seu livro “Privacy in Context: Technology, Policy, and the Integrity of Social Life” (Stanford University Press, Dezembro 2009), Nissenbaum explica por que algumas das mais promissoras abordagens teóricas à privacidade, desenvolvidas ao longo do tempo como resposta aos desafios tradicionais à privacidade, levam a conclusões insatisfatórias no caso da vigilância (surveillance) pública. A autora propõe o conceito de “integridade contextual” como um referencial alternativo para as questões relativas à privacidade, para capturar a natureza dos desafios postos pelas tecnologias da informação. A integridade contextual agrega proteção adequada para a privacidade a normas de contextos específicos, demandando que a obtenção e a disseminação da informação sejam apropriadas àquele contexto e obedeçam às normas vigentes de distribuição no seu âmbito.
Resta saber se a proposta de Reidenberg é viável, porém vale lembrar seu conhecimento de causa e seu pioneirismo em questões de fronteira entre a tecnologia e o Direito, em destaque o paralelo entre o código enquanto programa executável e o código enquanto norma legal, analogia também elaborada independentemente por Lawrence Lessig.
Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE
Investimentos e Notícias (São Paulo), 09/02/2010, 11:06hs, http://www.investimentosenoticias.com.br/ultimas-noticias/artigos-especiais/obscuridade-pratica-cidadaos-transparentes-e-o-estado-de-direito.html
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