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domingo, 31 de janeiro de 2010

O Uso de Mídia Visual e Ambientes Virtuais Imersivos em Júri

O Uso de Mídia Visual e Ambientes Virtuais Imersivos em Júri

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31 de janeiro de 2010 - Da mesma forma que um educador pode tirar proveito da tecnologia digital de produção e manipulação de mídia (imagens, sons, animação) para a transmissão de conteúdo, um depoente, uma testemunha, ou um advogado já dispõem de ferramentas para levar a bom termo sua perspectiva com respeito a um caso judicial perante uma corte. Tomemos o caso de um júri popular. Pode-se dizer que se trata, essencialmente, de um processo através do qual os advogados recriam um evento ou um conjunto de circunstâncias da vida real e aplicam ao cenário factual resultante certas regras do Direito. Tradicionalmente, durante o processo do júri, todo o material factual abstrato tais como estados mentais, autoridade, responsabilidade, ou mesmo causa e efeito, tem sido expresso verbalmente, ao invés de visualmente, através do testemunho de depoentes ou da argumentação do advogado. Observa-se, no entanto, que à medida que a tecnologia de criação e manipulação de mídia visual evolui, imagens e material gráfico passam a ter um papel cada vez maior no transmitir essa informação tradicionalmente comunicada por meio de palavras.

É fato que o Direito tem sempre seguido as mudanças no pensamento e na cultura, ainda que ocasionalmente a um passo mais sóbrio. Na era digital salta aos olhos a diferença de ritmo com que evoluem, por um lado, a tecnologia, um elemento fundamental da cultura contemporânea, e, por outro lado, os sistemas legais. Não obstante, as mudanças estão acontecendo a um ritmo notável, e a forma pela qual o Direito é praticado – como a verdade e a justiça são representadas e aferidas – está cada vez mais dependente do que aparece em telas de computadores em cortes, gabinetes judiciários, e agências governamentais. Historicamente, o Direito tem sido essencialmente sobre palavras: testemunho e argumento oral em um júri, leis e decisões judiciais, negociações e deliberações de júri. Em seu livro “Law on Display: The Digital Transformation of Legal Persuasion and Judgment” (New York Univ. Press, Outubro 2009), Neal Feigenson e Christina Spiesel defendem que nos dias de hoje, como nunca dantes observado, o Direito também é sobre imagens exibidas em telas eletrônicas, desde vídeos de câmera de painel de instrumentos, passando por fotos digitalmente reforçadas, animações computacionais, até displays de multimídia combinando fotos e vídeos, desenhos e diagramas, e muito mais. “A incorporação da multimídia e das mídias digitais pelo Direito está avançando rapida e continuamente, tomando novas formas: a evidência sob forma de realidade virtual em 3-D está sendo levada em consideração, e, graças à tecnologia de vídeo-conferência e à internet, processos legais completos podem em breve se dar online.”

Como bem observam os autores, trata-se de uma mudança significativa na cultura legal: raciocinar com figuras, interpretando-as e delas fazendo uso para a tomada de decisão, é bem diferente de raciocinar com palavras apenas. Isso pode ser um fator de desconforto, tanto para advogados quanto para juízes, dado que a comunicação visual tem sido historicamente pouco ou nada contemplada na formação de um profissional de Direito. É de se esperar que o desconforto ocorra também nos jurados, muito embora as tecnologias digitais se apresentem com a promessa de lhes propiciar acesso sem precedentes aos fatos com base nos quais devem tomar suas decisões.

Em artigo a ser publicado na revista Marquette Law Review (“High-Tech view: The use of immersive virtual environments in jury trials”, 2009), Carrie Leonetti e Jeremy Bailenson (este último professor do Departamento de Comunicação e diretor do “Visual Human Interaction Lab” da Stanford Univ.) lembram que o benefício da utilização da mídia visual é que, diferentemente das palavras, ela é um meio de comunicação muito mais rico, e que permite que itens codificados múltiplos de informação sejam transmitidos e absorvidos de uma só vez, resultando numa imagem direta sendo passada aos membros do júri através de associações. Além de ser enormemente mais rápida, mais eficiente, e mais precisa que as apresentações meramente verbais, a mídia visual pode propiciar uma verdadeira avenida de comunicação contínua com o júri. Além do mais, os estímulos visuais possibilitam aos jurados reterem mais informações com maior precisão por um período de tempo mais longo. Estudos mostram que, após um período de tempo razoável, os jurados se lembram de aproximadamente 85% do que eles vêem mas apenas 15% do que eles ouvem.

A tecnologia da realidade virtual é uma dessas mídias virtuais. Um ambiente virtual é um espaço digital no qual os movimentos do usuário são rastreados e seus arredores visualizados, ou digitalmente construídos e exibidos aos sentidos, em conformidade com aqueles movimentos. Mais especificamente, o chamado “ambiente virtual imersivo” (em inglês, “immersive virtual environment”, abrev. IVE) é uma cena ou “mundo” artificial, interativo, e criado por computador, no qual um usuário pode imergir a si próprio. Através da combinação de projeção estereoscópica de alta-resolução e de computação gráfica tridimensional, os IVE’s criam um sentido pleno de presença num ambiente virtual. De fato, IVE’s se constituem numa imersão em ambiente artificial no qual o usuário se sente tão parte do ambiente virtual quanto se sente no mundo real, pois o sistema cria uma realidade simulada e interativa que dá suporte ao som espacializado e ao toque virtual.

Diversos aspectos legais pertinentes aos avanços da tecnologia da realidade virtual têm sido tratados na literatura legal, desde os direitos de jogadores, usuários e avatares em mundos virtuais, termos de serviço e acordos de licença de usuário final, propriedade virtual e direitos de contrato, lei da propriedade intelectual e mundos virtuais, processo judicial sobre acusados em mundos virtuais, danos virtuais, crimes virtuais, direitos à privacidade virtual, taxação de moeda virtual, e a liberdade de expressão em realidade virtual, chegando até a confiabilidade e a autenticidade de evidência coletada num mundo virtual e a autenticidade e admissibilidade de evidência digital. O artigo de Leonetti & Bailenson analisa a possiblidade de se projetar um IVE para uso durante um júri, e conclui que a evidência fornecida por IVE’s adentrará inevitavelmente aos tribunais americanos. Adicionalmente, os autores afirmam que essa penetração inevitável é um desenvolvimento positivo para a própria busca da verdade por parte do júri.

Entre as teses do artigo encontra-se a afirmação de que, se, por um lado, as projeções digitais criadas por um IVE não são representações perfeitamente realísticas dos objetos que elas se propõem a recriar, um IVE pode, por outro lado, se constituir numa representação justa e precisa da cena que ele representa, desde que uma testemunha especialista possa assentar os fundamentos apropriados para mostrar que o IVE é suficientemente confiável e preciso a ponto de seu valor probatório compensar plenamente seus riscos inerentes de distorção.

Os autores chamam à atenção para o fato de que permitir a um jurado se engajar e interagir com um IVE não é sem precedentes no sistema legal americano. De fato, em 1992 no caso “Carolyn Stephenson versus Honda Motors Ltd. of America” (No 81067), primeiro a admitir evidência em realidade virtual, o advogado Dennis Seley do escritório McKenroth de Sacramento (Califórnia) convenceu uma Corte Superior da Califórnia da necessidade do uso de um componente visual de realidade virtual para ajudar o júri a entender a natureza do terreno sobre o qual a vítima do acidente decidiu passar com sua motocicleta.

O que ocorre é que um IVE criado para simular a cena de um crime ou acidente de modo que o júri pudesse visualizar virtualmente o ocorrido poderia vir a ser uma maneira mais precisa de reconstruir a cena do que um mera visualização do local ao vivo no júri, pois o IVE poderia simular a hora e o dia exatos assim como a presença física de uma forma que a cena verdadeira, desprovida da maior parte de sua evidência material presente antes da visualização, jamais poderia. Por último, mas não menos importante, Leonetti & Bailenson argumentam que, num caso de um crime, há duas vantagens que uma recriação através de um IVE teria sobre uma visualização ao vivo pelo júri ou mesmo sobre outra evidência representacional: (1) um IVE poderia ser controlado de uma forma que poderia eliminar os problemas relativos à regra de exclusão de evidência relevante baseada em preconceito, confusão ou perda de tempo, sem diminuir o valor probatório da evidência; e (2) o uso de um IVE representando os eventos sendo escrutinados poderia propiciar um veículo para que o acusado de um crime introduza evidência de sua versão dos eventos de modo que o júri possa testá-la, sem que isso que lhe traga prejuízos no que se refere a seus direitos de evitar a auto-incriminação.
Tudo isso leva a uma reflexão sobre o quão invasiva a utilização de um IVE durante um júri estaria sendo para o sistema judiciário tradicional. Leonetti & Bailenson argumentam que esse pode ser simplesmente mais um ponto numa linha de progressão tecnológica, desde a visualização da cena, passando por fotografia, evidência em vídeo, chegando até a evidência virtual. Segundo os autores, empregar um IVE não seria essencialmente diferente de admitir outros tipos de evidência testemunhal, demonstrativa, ou fotográfica que as cortes já têm permitido há décadas. Muitas das preocupações com o uso de um IVE durante um júri, desde a distorção, a confiabilidade, até a autenticidade, são na verdade as mesmas que foram levantadas quando a evidência fotográfica (e, mais tarde, em vídeo) de cenas de um crime ou de um acidente foi introduzida pela primeira vez em processos de júri.

Estamos diante de mais um caso em que os avanços tecnológicos nos oferecem o que Alvin Toffler chamou de “choque do futuro”, revelado num simples porém inevitável princípio da vida moderna: se, por um lado, a tecnologia avança num ritmo exponencial, os sistemas sociais, econômicos e legais, por seu turno, evoluem num ritmo incremental.

Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE

Investimentos e Notícias (São Paulo), 31/01/2010, 14:52hs, http://www.investimentosenoticias.com.br/ultimas-noticias/artigos-especiais/o-uso-de-midia-visual-e-ambientes-virtuais-imersivos-em-juri.html

Blog de Jamildo (Jornal do Commercio Online, Recife), 01/02/2010, 07:03hs, http://jc3.uol.com.br/blogs/blogjamildo/canais/artigos/2010/02/01/o_uso_de_midia_visual_e_ambientes_virtuais_imersivos_em_juri_63035.php

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