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segunda-feira, 12 de abril de 2010

O Ensino da Ética e da Cidadania Digitais

O ensino da ética e da cidadania digitais

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Num desses casos de sucesso viral na internet, eis que surge um vídeo clip que nos remete a reflexões profundas sobre o papel de pais e mestres na formação da cidadania digital em tempos de frenética e disruptiva evolução das novas tecnologias de comunicação e de socialização. No clip, um pai entrega à filha de 2 anos e meio de idade um exemplar do aparelho iPad recentemente lançado pela Apple. Em poucos segundos a garota já navega entre os diversos programas aplicativos através dos hoje ubíquos gestos típicos da interação com telas sensíveis ao toque, tão características da interação com o iPhone. Nos cinco minutos de duração do clip observa-se o quão à vontade se sente a garota: além de jogar uma espécie de soletrando infantil eletrônico, abrir um álbum de fotografias, tocar música num teclado virtual, jogar um vídeo game, e acionar a expansão do tamanho da tela para adaptar ao seu aparelho o programa aplicativo originalmente desenvolvido para o iPhone, a heroína infantil demonstra rapidamente uma familiaridade incomum com o novo “brinquedo”. É bem verdade que a criança não era exatamente uma noviça, pois já costumava brincar com o iPhone do pai, mas ainda assim, como observa MacGregor Campbell (“Innovation: iPad is child's play but not quite magical”, NewScientist, 09/12/10), diante de tamanha intimidade com a manipulação de objetos virtuais numa tela maior que sua própria cabeça é difícil não pensar que essa tela de multi-toques aparentemente simples definirá suas expectativas sobre o que um computador é e para que serve. Para essa geração, telas que não reajam ao toque vão ser entendidas como quebradas, e dispositivos que não possam fazer de tudo a qualquer momento serão no mínimo irritantes. A expectativa dessa “i-Geração” certamente será tal que objetos virtuais se comportem tão instantânea e intuitivamente quanto seus equivalentes físicos, e a dissolução da distinção entre o real e o virtual tanto pode parecer mágica quanto pode também se tornar o novo “normal”.

O fato é que o modo de interação humano-computador que começa a se concretizar deverá propiciar uma diminuição considerável das barreiras ao uso do computador e do telefone celular por segmentos menos capacitados a lidar com teclados e mouses, desde os acometidos de certos tipos de deficiência motora até crianças de idade ainda mais tenra. No caso dos dispositivos móveis e aparelhos celulares, por exemplo, a interação tradicionalmente ocorre através de botões e teclados, o que dificulta que a criança se sinta em pleno controle do dispositivo. Levando em conta que os avanços nas tecnologias de tela de toque e de entrada gestural podem melhorar significativamente a forma como as crianças interagem com dispositivos móveis, Carly Shuler, em “Pockets of Potential: Using Mobile Technologies to Promote Children’s Learning” (The Joan Ganz Cooney Center, New York, Jan/2009), considera fundamental o papel que as tecnologias de comunicação móvel podem desempenhar no estímulo a novas formas de aprendizado da nova geração, assim como na formação de uma geração de espírito verdadeiramente inovador. Tal qual demonstrou o Vila Sésamo (de Garibaldo e companhia), a exposição a mídias educacionais submetida a critérios de pesquisa científica pode acelerar o desenvolvimento de certas habilidades na criança, sobretudo nas áreas de comando de alfabetização fundamental, línguas estrangeiras, tópicos relacionados a ciência e matemática, colaboração, além de habilidades de pensamento crítico.
Dentre as principais oportunidades de aprendizado propiciadas pelos dispositivos de comunicação móvel Shuler destaca: (1) estímulo ao aprendizado “em qualquer lugar”, “em qualquer momento”; (2) atendimento a crianças menos favorecidas; (3) possibilidade de uma experiência de aprendizado mais personalizada; (4) capacidade de adaptação a ambientes de aprendizado diversos; (5) melhoria das interações sociais.

Há que se levar em conta que, com tanta exposição a mídias e com tanto acesso às tecnologias de comunicação e interação social, a criança precisa estar preparada para crescer e se desenvolver num mundo globalmente interconectado, multicultural e participativo. Em “Confronting the Challenges of Participatory Culture: Media Education for the 21st Century” (por H. Jenkins, com R. Purushotma, K. Clinton, M. Weigel e A. J. Robison, Comparative Media Studies Program, MIT, 2006) o conceito de cultura participativa é definido como sendo “uma cultura com barreiras relativamente baixas à expressão artística e ao engajamento cívico, forte apoio à criação e ao compartilhamento de criações, e algum tipo de aconselhamento informal através do qual o que é conhecido pelos mais experientes é passado para os mais novos.” Segundo Henry Jenkins, principal autor do relatório, vivemos numa época em que mais e mais jovens produzem (e não apenas consomem) mídia, se engajam em comunidades online, lideram grupos e comunidades de jogos, todos têm algo a contribuir e suas contribuições são valorizadas pelo grupo.

Extremamente rico em oportunidades de aprendizado mas ao mesmo tempo recheado de riscos, esse novo mundo participativo desperta ansiedade nos pais. E, com efeito, a primeira onda de ansiedade com respeito à convivência na internet se concentrou na segurança e nos chamados “predadores sexuais”. Porém hoje as principais preocupações dizem respeito ao modo como seus próprios filhos se comportam nesse espaço de convivência cibernética, de que forma interagem seja com amigos ou rivais, e que impressão seus perfis online podem vir a deixar nos futuros empregadores. Em artigo recente publicado no New York Times (“Teaching About Web Includes Troublesome Parts”, 08/12/10), Stephanie Clifford relata o caso de um professor do ensino fundamental do distrito de Milpitas (Califórnia) que começou este ano a dar aulas a alunos do 4º ano sobre como se comportar na internet, a partir do conteúdo curricular elaborado pela fundação “Common Sense Media” com base no trabalho de Howard Gardner, professor de Harvard, e reconhecida autoridade em educação e psicologia. Fundamentado nas recomendações do artigo “Young People, Ethics, and the New Digital Media: A Synthesis from the Good Play Project” (por C. James, K. Davis, A. Flores, J. M. Francis, L. Pettingill, M. Rundle, e H. Gardner, Harvard Graduate School of Education, 22/02/08), o conteúdo está baseado nas chamadas “linhas de falha ética” que decorrem da convivência cibernética sob forma de participação em redes sociais, blogs, jogos online, sistemas de mensagem instantânea, compartilhamento de música, filmes e outros conteúdos digitais, além de colaboração online: (1) identidade (como você se apresenta online?); (2) privacidade (o mundo pode ver tudo o que você escreve); (3) propriedade (plágio, reprodução de trabalho criativo); (4) credibilidade (fontes legítimas de informação); e, finalmente, (5) comunidade (interação com os outros).

Definindo “good play” (“boa jogada”) como a conduta online que é ao mesmo tempo significativa e cativante para o participante assim como responsável para com os outros na comunidade e sociedade no qual é adotada, os autores defendem que, com todo seu potencial participativo, as novas mídias são um “playground” no qual cinco fatores contribuem para a possibilidade da boa jogada: as qualidades das novas mídias digitais; alfabetizações técnicas relacionadas e em novas mídias; fatores centrados na pessoa, desde o desenvolvimento cognitivo e moral até as crenças e os valores de um jovem; culturas dos pares, tanto online quanto offline; e suportes éticos, incluindo a presença ou ausência de mentores adultos e currículos educacionais.

Diante de uma realidade inescapável, é imperativo que pais e educadores se juntem para assegurar que toda criança e todo jovem tenha acesso às habilidades e experiências necessárias para se tornar um cidadão digital, que possa articular seu entendimento de como as mídias amoldam as percepções, e seja devidamente socializado nos padrões éticos emergentes que devem guiar suas práticas como produtores (e não apenas consumidores) de mídia e participantes de comunidades do ciberespaço.

Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE

Investimentos e Notícias (São Paulo), 12/04/2010, 08:39hs, http://www.investimentosenoticias.com.br/ultimas-noticias/artigos-especiais/o-ensino-da-etica-e-da-cidadania-digitais.html


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