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domingo, 21 de novembro de 2010

A Delimitação dos Danos de Privacidade


A Delimitação dos Danos de Privacidade

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Ainda considerada uma noção extremamente confusa , em constante evolução, e declarada morta por muitos, privacidade parece estar sempre em desvantagem perante outros direitos supostamente fundamentais do cidadão tais como liberdade de expressão e segurança. Diante de casos concretos de invasão de privacidade, tais como os que têm sido reportados na recente série de matérias intitulada “What They Know” do Wall Street Journal mostrando a ampla espionagem dos hábitos de navegação dos consumidores na internet para fins de direcionamento de propaganda, a tendência é nos recolhermos ou aceitarmos como uma decorrência inexorável de um novo contrato social que aos poucos se estabelece entre as empresas de serviços na internet e o internauta.
Discussões sobre privacidade frequentemente apelam para sentimentos de receio e de ansiedade das pessoas, mas dificilmente esses instintos são traduzidos para uma expressão articulada e objetiva das razões pelas quais os problemas de privacidade trazem danos. A reivindicação da proteção à privacidade não raro vem acompanhada de uma dificuldade em deixar bem claro exatamente do que se trata.  E essa falta de clareza, como bem analisa Daniel Solove em “A Taxonomy of Privacy” (University of Pennsylvania Law Review, Jan/2006), cria uma enorme barreira para o estabelecimento de políticas que sirvam de referencial, ou mesmo na resolução de um caso, pois tanto legisladores quanto magistrados acabam tendo pela frente a árdua missão de articular os danos de privacidade. Os interesses do lado dos direitos de livre expressão, de segurança, e de transação de consumo eficiente, são, de modo geral, muito melhor articulados, argumenta Solove. Daí, tanto as cortes quanto os legisladores e responsáveis por políticas públicas têm dificuldade em reconhecer os interesses de privacidade. E mesmo quando isso ocorre, casos meritórios são desconsiderados ou projetos de lei não são aprovados em decorrência da falta de clareza. O resultado disso tudo é que não há um equilíbrio entre privacidade e os interesses compensatórios.
Até mesmo o imperativo da transparência de dados governamentais parece se sobrepor facilmente ao direito à privacidade, visto que o recurso à noção de privacidade nem sempre é suficientemente provido das devidas nuances para capturar adequadamente os problemas envolvidos. Nos Estados Unidos, o relatório da comissão encarregada de analisar o episódio das torres gêmeas em 2001 recomenda que, sempre que as agências governamentais se engajem em compartilhamento de informações entre si e com entidades privadas, procurem salvaguardar a privacidade dos indivíduos sobre os quais as informações dizem respeito. No entanto, pergunta Solove, estaríamos em condições de definir precisamente o que significa salvaguardar a privacidade? Seria possível tratar privacidade de forma apropriada sem que tenhamos um entendimento no mínimo razoável sobre a natureza dos problemas de privacidade?
Adicione-se a isso o fato de que diversos especialistas tratam privacidade como um conceito monolítico, com valor uniforme, e invariante em diferentes situações. Ao elaborar uma taxonomia da privacidade, Solove procura mostrar que as violações de privacidade envolvem vários tipos bem distintos de atividade problemática ou danosa, tais como, por exemplo: (i) um jornal publica o nome verdadeiro de uma vítima de estupro; (ii) repórteres penetram sorrateiramente na casa de uma pessoa e, sem autorização, fazem imagens dessa pessoa; (iii) dispositivos de raio-X utilizados em segurança de aeroportos permitem visualizar o corpo da pessoa através da roupa; (iv) uma empresa envia propaganda a cinco milhões de mulheres que sofrem de incontinência urinária; (v) apesar de prometer não vender as informações pessoais de seus clientes, a empresa o faz sem consultá-los; (vi) de posse de um smartphone, alguém filma os itens de compra de uma outra pessoa na farmácia e disponibiliza essas imagens na internet, sem autorização. Muito embora representem violações bem distintas inclusive na gravidade dos danos decorrentes, sem uma devida categorização do conceito de privacidade, todas seriam julgadas sob um único critério. E isso significa que problemas distintos de privacidade ou estariam sendo tratados em pé de igualdade apesar das diferenças significativas, ou sequer estariam sendo reconhecidos como um problema.
Em seu artigo “A Feeling of Unease About Privacy Law” (“University of Pennsylvania Law Review”, Vol. 155, 2006), Ann Bartow faz uma resenha do artigo de Solove, e avalia que o argumento peca em não categorizar adequada e convincentemente os verdadeiros danos de violação de privacidade. Apesar do consenso entre vários especialistas de que o comprometimento da privacidade de uma pessoa leva a um tolhimento e a uma mudança não desejada de comportamento, teria faltado na análise de Solove uma lista de razões pelas quais esse seria um fenômeno negativo que a lei deveria buscar prevenir. Em linguagem coloquial, Bartow diz que a taxonomia de Solove estaria sofrendo de excesso de doutrina, porém falta de cadáveres.
Em tom de discórdia da crítica de Bartow, Ryan Calo em artigo em seu blog (“Clementi And The Nature Of Privacy Harm”, 06/11/10) chama a atenção para o surgimento de um cadáver em decorrência de violação de privacidade: o corpo de Tyler Clementi, estudante de 18 anos de idade da Rutgers University que cometeu suicídio após ter sido informado de que havia sido filmado em cenas picantes com um outro rapaz por uma câmera escondida plantada por dois colegas, foi encontrado em 29/09/10 no Rio Hudson, sete dias após ter anunciado em seu perfil na Facebook, em tom de desespero, que saltaria da ponte George Washington em Nova Iorque. Embora ainda não esteja devidamente esclarecido quem de fato assistiu às imagens gravadas pelos colegas de Clementi, Calo acredita que o que importa é o que se passou na cabeça de Clementi. Se ele de fato se matou porque achou que todos os estudantes da Universidade assistiram às cenas de seu envolvimento sexual com um rapaz, então ele sofreu um severo dano de privacidade subjetivo, independentemente da veracidade do que acreditou ter acontecido. Ainda segundo Calo, o fato das imagens terem sido apenas gravadas ou também distribuídas largamente seria altamente relevante para se concluir que houve uma violação de privacidade, contudo não teria qualquer relevância para se afirmar que teria havido um dano de privacidade.
Finalmente, Calo conclui que o suicídio de Clementi traz à tona a natureza dual do dano de privacidade. Se, por um lado, danos de privacidade são as conseqüências objetivas que decorrem da perda de controle sobre informações pessoais, por outro lado também se revelam através da experiência subjetiva dessa perda. E isso se estenderia às experiências cotidianas do consumidor preocupado com o roubo de identidade que poderá sofrer após um vazamento de informações, ou à preocupação do cidadão em evitar piadas sobre terrorismo com receio da espionagem do governo sobre seus emails.
No final das contas, está em jogo a delimitação dos danos de privacidade. Em artigo intitulado “The Boundaries of Privacy Harm” (Jul/2010, a ser publicado no Indiana Law Journal), Calo propõe uma nova abordagem ao enfretamento dos problemas de privacidade. O autor defende que os danos de privacidade se classificam em subjetivo e objetivo.  O dano subjetivo é a percepção indesejada de estar sendo observado, que provoca estados mentais como ansiedade, receio e constrangimento. Por outro lado, o dano subjetivo é o uso coagido ou não antecipado de informações relativas a uma pessoa contra aquela pessoa, exemplo do qual estão o roubo de identidade e o vazamento de informações confidenciais.
Entre outras vantagens, a teoria oferece um desacoplamento entre dano e violação de privacidade, mostrando que para que haja um dano de privacidade não há necessidade de que uma pessoa cometa uma violação de privacidade (e vice-versa).  Adicionalmente, a teoria estabelece um “princípio limitador” capaz de revelar quando um outro valor, tal como autonomia ou igualdade, está mais diretamente em jogo.  Como se não fosse bastante, a teoria cria uma “regra de reconhecimento” que permite a identificação de um dano de privacidade quando nenhum outro dano está aparente, além de propiciar uma nova perspectiva sobre o dimensionamento dos danos de privacidade
 
Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE

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