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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Prontuários Cibernéticos e o Dilema entre Privacidade e Saúde

OPINIÃO / ARTIGO

Prontuários cibernéticos e o dilema entre privacidade e saúde

POSTADO ÀS 10:29 EM 23 DE FEVEREIRO DE 2009

Por Ruy J.G.B. de Queiroz

No pacote de estímulo à economia americana estão previstos US$20 bilhões para acelerar o uso de registros médicos computadorizados. Em seu discurso sobe o pacote, o Presidente Obama explicou por que esses recursos faziam parte do pacote de estímulo econômico: trata-se de um investimento gerador de empregos tanto no presente quanto no futuro, e que deverá melhorar a qualidade da assistência médica e salvar vidas. As provisões no pacote para a tecnologia da informação sobre saúde se constituem num passo à frente em direção ao objetivo de adoção de registros médicos eletrônicos quase universais pelos próximos 10 anos (comparados com os 17% de hoje). Ao assinar o American Recovery and Reinvestment Act (ARRA) em 17/02/09, o Presidente Obama garante financiamento e incentivos para acelerar a adoção de tecnologias clínicas e negócios eletrônicos interoperáveis na área de assistência médica, ao mesmo tempo em que fortalece as salvaguardas de privacidade para as informações de saúde de pacientes. O trecho do ARRA que trata desse tópico é o "Health Information Technology for Economic and Clinical Health Act", ou "HITECH Act." Entre os principais objetivos está vencer uma das principais barreiras à universalização, que é certamente a portabilidade.

Se a portabilidade de dados e o estabelecimento de padrões para uma internet verdadeiramente aberta têm se constituído numa grande promessa de estímulo à inovação em redes sociais, não é difícil imaginar o que uma paisagem de dados segura, baseada em padrões internacionais, e apoiada em medidas de segurança certificadas significaria para a área de assistência médica. Se os grandes personagens no mundo das redes sociais fazem de tudo para guardar a sete chaves as informações de seus membros, e resistem à portabilidade de dados, imagine como seria essa resistência na multi-trilionária indústria médica.

Não obstante, um grande passo em direção a essa paisagem foi dado recentemente. A IBM, em colaboração com a Google e a Continua Health Alliance (que inclui Nokia, Intel , e Panasonic) anunciaram em 05/02/09 a disponibilidade de um novo software para o manuseio de informações do Google Health que pode inclusive habilitar dispositivos médicos pessoais para monitoração, acompanhamento e avaliação rotineira de pacientes, a alimentar automaticamente os resultados na conta do paciente no Google Health ou outro registro pessoal de saúde (em inglês, "personal health record", abrev. "PHR").

Com o Google Health, o produto da Google para informações sobre registros de saúde (de forma análoga à que o Gmail trata dos registros de mensagens eletrônicas) oficialmente lançado em Maio de 2008, que permite que usuários armazenem, gerenciem, e compartilhem seus registros médicos e suas informações de saúde, tudo isso de forma segura e online, a Google Inc. busca se diferenciar num mundo de empresas rivais de software para registros de saúde ao oferecer aos médicos independentes (isto é, aqueles não associados a qualquer organização de assistência médica) o acesso ao prontuário do seu paciente. Ainda no primeiro semestre de 2009 a gigante da internet deverá introduzir um mecanismo de compartilhamento pessoa-a-pessoa, semelhante ao Google Calendar, que permitirá o acesso ao PHR por parte de terceiros. Como o armazenamento dessas informações está sendo realizado em nome do indivíduo e não do provedor da assistência médica, o Google Health não está regido pelo Health Insurance Portability and Accountability Act (HIPAA), uma lei federal americana de 1996 que regulamenta o uso e o manuseio de informações sobre a saúde do paciente. Assim, se o paciente tem seu registro no Google Health, o médico pode consultar seu perfil durante uma consulta, e usá-lo como uma ferramenta. Um exemplo de uma ferramenta útil é um "estimador de risco de ataque do coração", disponibilizado pela American Heart Association: após importar os dados do registro do paciente, é calculada a probabilidade de ocorrência de um problema coronariano.

Sistemas de registros médicos online gerenciados pelo indivíduo como o Google Health também são oferecidos por Microsoft (com a plataforma HealthVault), WebMD, Revolution Health Group, e mais recentemente, UnitedHealth Group Inc., uma grande seguradora. Mas nenhum desses registros médicos são intercambiáveis entre os agentes provedores de assistência médica, e, no caso de uma emergência, os médicos ficariam impossibilitados de acessar as informações do paciente sem seu consentimento expresso.

O novo software advindo da parceria IBM-Google estende o valor dos PHR's a consumidores e também contribui para assegurar que tais registros estejam atualizados e precisos em todo momento. Uma vez armazenados num PHR, os dados também podem ser compartilhados com médicos clínicos-gerais e outros membros da rede de assistência médica conforme a vontade do usuário. Dessa forma, profissionais de saúde terão condições de dar retorno em tempo hábil ao paciente, conforme suas condições de saúde, sugerir tratamento, e ajudar a melhorar a qualidade de vida como um todo. Em um mundo onde doenças crônicas como o diabete afligem mais de 600 milhões de habitantes, onde mais de 1 bilhão de pessoas sofrem de obesidade, e onde o número de idosos chegará a 1,2 bilhão em 2025, iniciativas como a parceria IBM-Google têm muito a contribuir para uma melhor qualidade de vida do cidadão.

O fato é que uma ferramenta como essa permitirá ao médico trabalhar em parceria mais efetiva com seus pacientes sobretudo no compartilhamento de decisões e no esforço de garantir uma assistência mais completa. Para chegar a isso a Google conta com parceiros tais como redes de farmácias, laboratórios, hospitais, grupos e consultórios médicos, seguradoras e fabricantes de equipamentos médicos, de forma a oferecer mais serviços ao indivíduo, e de forma mais integrada: tudo o que se passa com o usuário no contexto nesses parceiros pode ser importado para armazenamento nos registros do usuário. Diferentemente do que faz com outros produtos (Gmail, Google Search, etc.), a Google diz que não tem planos de rodar anúncios no Google Health. O uso não será cobrado aos parceiros, e não há taxa para um indivíduo usar o serviço. Mas alguns médicos alertam que o sistema pode levar a erros, pois, como não há obrigatoriamente a intermediação de um profissional, o indivíduo precisa estar atento para entrar com a informação correta. De qualquer modo, tais desenvolvimentos podem significar boa notícia para os consumidores que buscam coletar, armazenar e compartilhar seletivamente seus prontuários de saúde sob forma digital, coordenar registros com seus médicos, ou se servir de um sistema intuitivo de busca eletrônica para questões médicas.

Por outro lado, com a convivência cibernética tomando vulto, é cada vez maior a disponibilização pública de dados sensíveis, que, se manipulados inapropriadamente, podem causar sérios prejuízos aos sujeitos associados a tais informações. Particularmente sensíveis são as informações sobre o histórico de saúde, ou o "prontuário cibernético" de um cidadão. Segundo Kristen Gerencher em seu artigo de 27/03/08 no portal MarketWatch "As more of our health records move online, privacy concerns grow", a grande preocupação é com privacidade. Um cidadão que entra com informação médica sensível num PHR deseja garantia de que seus dados não serão expostos de modo a lhe causarem constrangimentos, ou, pior ainda, lhe prejudicarem no esforço de garantir um emprego ou um seguro-saúde. Na sua página sobre o produto Google Health, a empresa diz: "É seguro? Sim! Acreditamos que a informação sobre sua saúde pertence a você, e você deve decidir o quanto deseja compartilhá-la e com quem. Nunca venderemos seus dados. Armazenamos sua informação de forma segura e privativa."

Apesar das diversas promessas de várias empresas e de algumas leis estaduais que determinam padrões adicionais de privacidade, há mais perguntas que respostas no que se refere à proteção dos PHR's. Poucos duvidam da utilidade desses sistemas de PHR's, desde alertas notificando o usuário sobre possíveis interações de medicamentos até a capacidade de se compartilhar radiografias e outros exames médicos com outros profissionais de saúde que não o próprio médico. O problema é que muitas das empresas que oferecem PHR's não têm suas atividades regidas pelo HIPAA, portanto ao indivíduo restam as promessas de que aquelas informações não serão utilizadas além do que fora inicialmente acordado. Como de praxe, é importante que o usuário leia com atenção os documentos da empresa que declaram a "política de privacidade" e os "termos de uso", mas a linguagem nem sempre é amigável ou mesmo acessível. Pior ainda, em geral as empresas se reservam o direito de modificar quaisquer dos dois, e, mesmo que o usuário seja informado das mudanças, na prática dificilmente estará atento ao que mudou. (Veja-se o caso recente (04/02/09) da mudança dos termos de serviço da rede social Facebook quanto aos direitos sobre as informações introduzidas por seus membros, e que, em função dos protestos de diversos usuários e de grupos ativistas de proteção à privacidade, acabou cancelada (18/02/09).)

Por prevenção, um bom número de consumidores já praticam o que os pesquisadores chamam de "comportamentos de saúde protetores-da-privacidade" que podem significar um perigo para o indivíduo: recusar a se submeter a exames médicos por receio de que os resultados acabem na mão de terceiros, pedir ao médico para não registrar um diagnóstico ou registrar um diagnóstico menos grave ou menos embaraçoso, visitar um outro médico para evitar informar ao médico que o acompanha regularmente sobre uma determinada condição, e pagar do próprio bolso ao invés de fazer uma solicitação à seguradora para um exame, um procedimento ou uma consulta. Na verdade, 13% de consumidores em média admitiram ter cometido pelo menos um desses atos, de acordo com uma pesquisa de 2005 realizada pela California Healthcare Foundation com 2100 adultos.

E o cidadão fica no dilema entre manter a privacidade e cuidar da saúde?

PS: Ruy é professor associado do Centro de Informática da UFPE e escreve ao Blog sempre às segundas, até mesmo em pleno Carnaval.

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