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segunda-feira, 2 de março de 2009

Abertura e transparência, com proteção à privacidade

OPINIÃO / ARTIGO

Abertura e transparência, com proteção à privacidade

POSTADO ÀS 08:25 EM 02 DE MARÇO DE 2009

Por Ruy J.G.B. de Queiroz

Como diz John Schwartz numa matéria recente no New York Times (“An Effort to Upgrade a Court Archive System to Free and Easy “, 12/02/09), estamos nos acostumando a encontrar praticamente tudo na internet, de forma rápida, e de graça. Mas quando se trata de decisões judiciais, não se tem Google. Mesmo nos EUA, o acesso a decisões das cortes federais e processos judiciais tem que ser feito através de um sistema antiquado, não-gratuito, e mantido pelo governo, chamado PACER (“Public-Access to Court Electronic Records”).

Recentemente, um grupo de ativistas pela transparência e por um “governo aberto”, liderados por Carl Malamud (tecnologista, autor de diversos livros, e defensor do domínio público, mais conhecido atualmente como fundador da organização civil sem fins lucrativos “Public Resource” - public.resource.org) se juntaram para tentar modernizar o sistema de registros judiciais levando ao domínio público partes da base de dados do PACER às quais tiveram acesso.

Malamud diz que o sistema está tecnologicamente atrasado de 15 a 20 anos. O porta-voz das cortes americanas, Richard Carelli, discorda e diz que o PACER é o maior avanço tecnológico no sistema dos tribunais nos últimos 20 anos. O sistema de busca já revolucionou o acesso aos registros judiciais, argumenta Carelli, evitando as idas e vindas aos fóruns e tribunais e eliminando os custos com fotocópia. Além disso, o PACER já provê aos seus 900.000 usuários acesso gratuito a opiniões judiciais, e o cidadão não precisa pagar se o total de suas consultas no ano não chegar a US$10.

Na verdade, Malamud não espera e faz acontecer: usando US$600 mil em contribuições em 2008 para adquirir registros, contactando advogados e solicitando que doem seus documentos retirados do PACER, e aí então classificando, compactando e disponibilizando gratuitamente no portal da Public Resource, o trabalho de um ano já permitiu que o acervo conte com 20% do PACER, incluindo todas as decisões de cortes de apelação federais dos últimos 50 anos. O projeto é importante, segundo ele, porque os registros dos tribunais são parte do tecido de uma democracia, e por isso deveriam estar disponíveis gratuitamente a todos os cidadãos.

O fato é que o PACER reúne informações que muitos acreditam deveriam estar disponíveis sem custo ao cidadão — documentos produzidos pelo governo americano não podem ser protegidos por direitos autorais, conforme determinou a Suprema Corte — e, mesmo assim, é cobrada uma taxa de 8 centavos por página, que em 2006 gerou um lucro de US$ 50 milhões ao poder judiciário federal americano. A maioria dos serviços privados que facilitam a busca, como Westlaw e Lexis-Nexis, cobram muito mais caro, enquanto que novos serviços como AltLaw.org, Fastcase.com, e Justia.com, oferecem alguns registros por um preço mais barato, ou até mesmo de graça.

Mas mesmo com o custo aparentemente menor do PACER, acaba saindo caro quando um processo é volumoso. A arrecadação com as taxas retorna aos tribunais para financiar tecnologia, mas mesmo assim o sistema tem uma sobra de cerca de US$150 milhões, conforme relatórios recentes.

Para Malamud, impedir ou dificultar o acesso gratuito e universal ao sistema legal de um país acaba separando o povo do que ele chama de “o sistema operacional da democracia” (leis, códigos e casos jurídicos), e que o sistema só funciona se todos tiverem acesso irrestrito às fontes primárias. A visão unificadora dos que desafiam o estado atual do acesso a essas informações aponta para um portal no estilo Wikipedia que possa disponibilizar as informações e permitir a busca e o comentário, de forma aberta, universal e gratuita. Surgirá daí naturalmente um sistema público de anotação das leis por estudiosos do Direito assim como blogueiros, tudo isso em nome de um acesso mais rico do cidadão às leis de seu país.

Até o final de 2008, Malamud já se considerava pronto para encarar as bases de dados maiores das cortes distritais que, com a ajuda do Government Printing Office (GPO) tinham organizado em 2007 uma promoção de acesso livre ao PACER em 17 bibliotecas. (O GPO é uma agência do poder legislativo do governo americano que publica e provê acesso a documentos produzidos para e pelos três poderes do governo federal, incluindo a Suprema Corte, o Congresso, o Gabinete Executivo do Presidente, os departamentos executivos, e as agências independentes.) Ao tomar ciência disso, esse “gadfly” da internet (termo em inglês que significa “cri-cri”: alguém insistente, intrometido, que incomoda) convocou os colegas ativistas a visitar tais bibliotecas, baixar a maior quantidade possível de documentos, e enviá-los para republicação na web, onde seriam alcançados pela indexação do Google.

Alguns ativistas tomaram por capricho atender ao chamado de Malamud (“A lei contém as regras que governam nossa sociedade. Só queremos ser capazes de ler nosso próprio manual do usuário”), como por exemplo, Aaron Swartz, um ex-aluno de Stanford, hoje empreendedor, conseguiu baixar o que se estima representar 20% da base de dados: 780 giga bytes de dados, contendo 19.856.160 páginas de texto. Mas aí, no final de Setembro passado, todos os servidores com acesso livre ao PACER pararam de servir. Veio uma nota do GPO informando que o serviço piloto do PACER havia sido suspenso, e que seria reavaliado. Duas semanas depois, um funcionário do GPO avisou aos bibliotecários que “a segurança do serviço PACER foi comprometida”, e que o FBI estava investigando.

Determinado a lutar pela abertura e transparência dos registros judiciais e documentos governamentais, Malamud recentemente se lançou numa campanha para assumir o posto de “Public Printer” (i.e., diretor do GPO), usando o slogan “Yes we scan” (“Sim, digitalizamos”) parafraseado do mote “Yes we can” (“Sim, podemos”) utilizado na campanha de Obama. Sem cerimônia, e inspirado em Gus Geigengack, que mesmo vindo de fora dos círculos do poder, e não tendo qualquer proximidade com Franklin Roosevelt, convenceu o então presidente a nomeá-lo Public Printer enviando à Casa Branca uma moção de apoio de 200 cartas, vem a público se oferecer, e já conta com inúmeros endossos, incluindo alguns nomes de peso (Lawrence Lessig, Tim O’Reilly, Tim Wu, Pamela Samuelson, Tim Stanley).

Norteando sua campanha está a convicção de que publicação é uma via de mão dupla, e que por isso é preciso investir na melhoria da usabilidade e da capacidade de navegação do portal que hospeda o Federal Register (o Diário Oficial americano) assim como a própria apresentação visual desse veículo oficial.

Assim, o Federal Register 2.0 (numa referência à perspectiva interativa, em analogia à chamada Web 2.0) precisa prover acesso em 3 níveis: (i) no nível mais baixo, massas de dados no formato SGML (“Standard General Markup Language”, uma metalinguagem através da qual se pode definir linguagens de marcação para documentos), assim como versões em PDF e HTML devem estar disponíveis sem custo (o preço atual de US$17 mil tem um efeito negativo sobre a inovação e não é apropriado para publicações do governo); (ii) uma API (“application programming interface”, i.e. um conjunto de rotinas e padrões estabelecidos por um software para a utilização das suas funcionalidades por programas aplicativos) deveria permitir a qualquer blogueiro embutir um documento, uma parte de um documento, ou um fluxo de documentos no seu próprio portal, tal qual se pode fazer com um clip ou lista de clips do YouTube; (iii) a mesma API que desenvolvedores externos usam podem então ser usadas pelo governo para montar um portal melhor, o Federal Register 2.0. No final das contas, a intenção é promover uma “reinicialização” na comunicação do governo com o cidadão (o termo técnico em inglês “reboot” é usado em referência à uma reinicialização tecnológica, como a reinicialização do sistema operacional de um computador) que levaria a uma transformação radical em 4 anos: (1) digitalizar completamente todas as informações governamentais, incluindo a Library of Congress e os National Archives; (2) mudar a interação entre o governo e o cidadão de um fluxo de mão única para um fluxo de mão dupla, oferecendo a chance, por exemplo, de que um cidadão seja capaz de participar de procedimentos públicos, ajudando a sugerir mudanças à legislação ou perguntas a testemunhas depondo perante o Congresso; (3) reinicializar o domínio “.gov” e torná-lo uma das 10 maiores destinações na internet.

Não obstante sua obsessão com abertura e transparência da informação, Malamud tem uma longa história de tentar equilibrar abertura com proteção à privacidade, e nesse ponto a questão se torna bem espinhosa quando se trata de documentos judiciais que podem conter informações pessoais. Alguns estudiosos, como Daniel J. Solove, professor da Faculdade de Direito da George Washington University, temem que empresas de propaganda consultem registros judiciais à procura por dados pessoais, e que ao facilitar o acesso a esses registros estaríamos colocando mais dados sob risco de violação indevida.

Alguns mais cuidadosos, como Peter Winn, um especialista em privacidade que exerce a função de procurador-assistente no estado de Washington, argumentam que os tribunais desenvolveram regras durante os últimos 400 anos para proteger a privacidade, e que isso não pode ser desperdiçado: se funcionou na era da pedra-e-cal, deve funcionar também na era eletrônica. Malamud, por sua parte, diz que está de pleno acordo que o sistema judiciário precisa fazer melhor no que diz respeito à proteção da privacidade. Após encontrar milhares de documentos nos quais os advogados e os tribunais não tinham protegido apropriadamente as informações pessoais como números de seguridade social (“social security number”), uma franca violação das regras dos próprios tribunais, Malamud decidiu enviar cartas aos assistentes judiciários de cada uma das cortes americanas.

Sem receber resposta, e somente depois de repetidas e mais enérgicas solicitações, observou que a maior parte dos documentos problemáticos haviam sido retirados da base de dados para o devido reparo. Por incrível que pareça, havia dados sobre crianças em Washington, nomes de agentes do Serviço Secreto, nomes de membros de fundos de pensão, e muito mais. Em um certo momento, a equipe do portal Public Resource usou algumas ferramentas de software primitivas para fazer busca por números de seguridade social em registros judiciais de 32 cortes distritais, e os resultados foram preocupantes: 1.700 documentos confirmados, incluindo um de uma corte de Massachusetts que continha uma lista de 54 páginas dos nomes, problemas de saúde, números de seguridade social e datas de nascimento de 353 pacientes.

Malamud diz que tem sido contactado por pessoas chocadas em descobrir um antigo processo no qual foram citadas de repente aparecendo em resultados de busca com seus nomes. Segundo ele, grupos de interesse público e o público em geral, quando dispõem do acesso a esses registros públicos, são capazes de fornecer o tipo de realimentação que leva à correção dessas questões em torno da privacidade. Portanto, se desejamos tratar com seriedade a proteção à privacidade pessoal, somente podemos fazê-lo se também tratarmos com seriedade o acesso público à informação.

Sem dúvida, abertura e transparência não são incompatíveis com a proteção à privacidade. Equilíbrio é a palavra de ordem.

PS: Ruy é professor associado do Centro de Informática da UFPE e escreve para o Blog sempre às segundas.

Blog de Jamildo (Jornal do Commercio, Recife), 02/03/2009, 08:25hs,

http://jc3.uol.com.br/blogs/blogjamildo/canais/artigos/2009/03/02/abertura_e_transparencia_com_protecao_a_privacidade_41876.php

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