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segunda-feira, 16 de março de 2009

Valores Morais no Ciberespaço e a Convivência Online

OPINIÃO / ARTIGOS

Valores morais no ciberespaço e a convivência online

POSTADO ÀS 09:12 EM 16 DE MARÇO DE 2009

Por Ruy José Guerra Barretto de Queiroz

Conforme um relatório recente da Nielsen Online (um serviço da Nielsen Company, empresa de informação e mídia global com liderança de mercado em marketing e informação ao consumidor, medição para a televisão e outras mídias, inteligência online, medição para comunicação móvel, convenções comerciais e publicações de negócios), as redes sociais (Facebook, Orkut, MySpace) se constituíram no grande fenômeno de consumo global de 2008. Dois terços da população da internet visitam uma rede social ou um blog, e o setor agora representa quase 10% de todo o tempo da internet. 

As “Comunidades baseadas em Membros Inscritos” ultrapassaram E-mail para se tornar o quarto setor mais popular online depois de busca, portais e aplicações de software de computador pessoal. Tudo isso é consistente em todo o mundo, e as Comunidades fincaram de vez um pé nos maiores mercados online, desde 50% da população online na Suíca e Alemanha até 80% no Brasil. A Facebook, por exemplo, se tornou o maior ator no cenário global, assumindo uma posição dominante em muitos países. Entretanto, o crescimento da popularidade das redes sociais – e a audiência crescente resultante desse processo – é apenas metade da estória. 

O enorme aumento no tempo que as pessoas estão dedicando a esses portais está mudando a forma pela qual essas pessoas passam o tempo online, e tem ramificações no modo como se comportam, compartilham e interagem nas suas vidas cotidianas normais. As redes sociais online começaram com a audiência dos mais jovens, porém, à medida que se tornam mais populares, não chega a ser surpresa ver sua audiência se tornando mais ampla e mais madura. Essa mudança tem sido impulsionada sobretudo pela Facebook (que começou em 2003 como um serviço aos calouros de Harvard:  conhecer um álbum de fotos e dados dos veteranos), cuja fórmula bem sucedida abriu de fato um mundo de possibilidades de convivência através dessas redes a uma audiência bem mais ampla.

O fato concreto é que a convivência através da internet já é uma realidade para a grande maioria de menores e adolescentes americanos (alguns estimam mais de 90%), e mesmo assim poucos estudos científicos foram realizados sobre a influência do desenvolvimento moral, do raciocínio, e da tomada de decisões no comportamento nesse espaço “virtual” de socialização. Considera-se até certo ponto surpreendente essa carência de pesquisas sobre o assunto, tendo em vista as fortes evidências de que crianças e adolescentes, especialmente no mundo ocidental, passam boa parte de seu cotidiano no mundo virtual (vide Pew Internet & American Life Project 2006), onde são muitas as oportunidades de se engajar em comportamento “questionável”. (Por exemplo, conforme matéria recente no portal da Reuters, mais da metade dos adolescentes americanos mencionam comportamentos arriscados tais como sexo e drogas em suas contas na rede social MySpace.) 

A anonimidade da internet, sua disponibilidade 24 horas por dia de segunda a domingo, e a enorme gama de informações e atividades “inapropriadas” online obviamente levantam questões morais diretamente relevantes aos menores usuários da internet. Por exemplo, há evidências documentadas de que menores vêem pornografia online (a chamada “ciberpornografia”), baixam arquivos ilegalmente (i.e., música, filme, ou livro protegido por direitos autorais), importunam amigos e conhecidos (há um termo em inglês que parece estar sendo absorvido na língua portuguesa: “cyberbullying”), interagem de formas “íntimas” com estranhos, e praticam o plágio “roubando” informações e fazendo de conta que é deles.

Considerado pela crítica como bem-vindo e oportuno, o artigo intitulado “Gender, Race and Morality in the Virtual World and Its Relationship to Morality in the Real World”, publicado em Fevereiro último na revista científica Sex Roles, relatando um estudo liderado por Linda Jackson, professora de psicologia da Michigan State University, busca descobrir se os valores morais da vida real se transferem para o mundo virtual. Conforme os próprios autores, trata-se da primeira investigação sistemática dos efeitos de gênero e raça sobre a moralidade de menores no mundo virtual, e até que ponto isso está relacionado com a moralidade desses menores no mundo real. O estudo se concentra fundamentalmente em três questões. 

Primeiro, há diferenças de gênero e/ou raça na aceitabilidade de comportamentos moralmente questionáveis no mundo virtual? Em segundo lugar, o comportamento moral e as atitudes morais no mundo real servem como elementos para se prever a aceitabilidade de comportamentos moralmente questionáveis no mundo virtual? Finalmente, será que a freqüência de uso da tecnologia (computador, internet, video game, celular) determinam a aceitabilidade de comportamentos moralmente questionáveis no mundo virtual?

A pesquisa se baseia nas respostas de 515 estudantes do sétimo ano (12 a 13 anos de idade) a perguntas sobre aceitabilidade de ações “virtuais”. Essas ações incluem espalhar vírus de computador, enviar por e-mail a amigos as respostas a questões de exames escolares, ver pornografia, e enviar mensagens sexualmente explícitas a estranhos. A pesquisa compara esses resultados a perguntas sobre o comportamento no mundo real como colar (ou “filar”) nos exames escolares, abusar ou importunar colegas (em inglês “bullying”), mentir para os pais ou professores, e usar expressões racistas.

Os autores chamam a atenção para o fato de que o que mais se aproxima de uma consideração do comportamento moral no mundo virtual é a chamada política do “uso aceitável”. Provedores de serviços de internet, assim como instituições públicas e privadas que provêem acesso à internet (como, por exemplo, escolas) normalmente exigem que os usuários assinem um termo de compromisso concordando em evitar comportamentos virtuais inaceitáveis. Entretanto, não fica claro se os menores enxergam a adesão a tais termos como um “imperativo moral”. Igualmente, não está claro se a moralidade desenvolvida no mundo “real” influencia as crenças sobre o que constitui comportamentos imorais ou inaceitáveis no mundo virtual. Surge a questão: existem dois mundos diferentes quando se trata de moralidade?

Embora os resultados da pesquisa indiquem que a moralidade no mundo real dá uma idéia de como crianças vêem comportamento online questionável, o relacionamento se mostrou fraco, conforme a professora Linda Jackson. Isso sugere que outros fatores influenciam a moralidade online, e que “há uma disparidade entre a forma como crianças pensam sobre moralidade ou virtude no mundo virtual e no mundo real, e que portanto há algo mais.” O que é esse algo mais, ainda não está claro. É preciso entender melhor o processo de conceitualização desse novo mundo virtual, e se os menores de fato o pensam como separado. 

Não é difícil imaginar como uma criança desenvolveria essa percepção, pois em 90% das vezes, eles sabem mais sobre esse mundo virtual que seus próprios pais. Isso pode inclusive passar uma sensação do tipo “talvez meus pais saibam muito sobre o mundo real, mas quando estou online, é meu mundo”. Como agravante, para os menores que têm seus próprios computadores, a percepção tende a ser de que sua privacidade está garantida e que é possível fazer tudo no mundo virtual sem correr o risco de ser apanhado.

Como conclusão e recomendação final, os autores afirmam que intervenções educacionais que sejam culturalmente sensíveis precisam ser desenvolvidas para assegurar que todos os menores, independente de raça ou gênero, entendam que certos comportamentos virtuais são inaceitáveis, e que, na verdade, podem vir a ser psicologicamente prejudiciais, como a violência excessiva em vídeo games, ou fisicamente perigosos, como contactar estranhos online.

A busca pelo conhecimento científico apropriado para o enfrentamento dessas questões faz parte de um projeto mais amplo de criação, no âmbito da UFPE, de um Centro de Estudos de Internet e Sociedade à luz de exemplos bem sucedidos como Harvard e Stanford. 

O objetivo é explorar e entender o ciberespaço; estudar seu desenvolvimento e dinâmica, suas normas e padrões; e avaliar a necessidade ou a falta de leis e sanções para esse novo espaço de convivência. Agindo como um forum interdisciplinar, o Centro deverá buscar reunir estudiosos, acadêmicos, legisladores, estudantes, programadores, pesquisadores em segurança da informação, e cientistas para estudar a interação entre as novas tecnologias e as ciências sociais (Direito, Economia, Sociologia, Psicologia, Pedagogia) e examinar como a sinergia entre essas disciplinas pode promover ou prejudicar bens públicos como a liberdade de expressão, a privacidade do indivíduo, os comuns públicos, a diversidade, e a investigação científica. 

A intenção é fomentar ações que melhorem tanto a tecnologia quanto as leis e as regras de convivência social, encorajando os tomadores de decisões a projetar tanto as leis como as tecnologias como veículos do aprimoramento dos valores democráticos. 

PS: Ruy é professor associado do Centro de Informática da UFPE e escreve para o Blog sempre às segundas.

Blog de Jamildo (Jornal do Commercio Online, Recife), 16/03/2009, 09:12hs, http://jc3.uol.com.br/blogs/blogjamildo/canais/artigos/2009/03/16/valores_morais_no_ciberespaco_e_a_convivencia_online_42800.php


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