Código e poder na sociedade da informação
Por Ruy José Guerra Barretto de Queiroz
(Dedicado ao Dia Internacional da Mulher, 08 de Março)
Num artigo recente (“Women & The Rise of Code: Is Power a Moving Target”, 15/02/09) em seu blog no Center for Internet and Society (Stanford), Ryan Calo reexamina a questão sobre o balanço do poder estar sempre sendo determinado pelos códigos de lei. E lembra que quase todo juiz nos EUA freqüentou a faculdade de direito, assim como a maioria dos legisladores, muitos líderes industriais e de organizações sem fins lucrativos, e até mesmo 26 dos últimos 44 presidentes americanos. Não deve causar surpresa, afirma Calo, que muito dos estudos feministas se concentre na atual subrepresentação das mulheres na profissão do Direito, particularmente nos seus escalões mais altos.
A Faculdade de Direito da Universidade de Yale, considerada pela revista U.S. News & World Report como a melhor faculdade de direito dos EUA, superando inclusive Harvard, começou formalmente a admitir mulheres em 1918, e hoje, 90 anos depois, apenas 17,3% dos parceiros de empresas de advocacia nos Estados Unidos são do sexo feminino. Dezoito dos 100 senadores americanos são mulheres, e a bancada federal da câmara dos representantes permanence 80% masculina. Muitos estudiosos de peso buscam demonstrar que esse estado de penúria: (i) resulta de discriminação sistêmica e corrente; (ii) significa que as mulheres têm menos influência no fazer, no aplicar, e no interpretar a lei e as políticas públicas; e (iii) no final das contas se traduz em lei que (sutilmente) discrimina contra a mulher ou promove valores essencialmente masculinos.
Muito embora muitos avanços têm sido obtidos no que concerne a uma melhor participação da mulher na sociedade americana (eventos de 2008: pela primeira vez uma mulher americana é promovida a general de quatro-estrelas, e a quase-indicação de uma mulher para disputar a presidência), Calo alerta que é preciso não esquecer de observar os movimentos do poder. A cada dia fica menos óbvio que a lei permanecerá como repositório primário do poder.
Já no final da década de 1990, Lawrence Lessig, motivado pela visão comum de dois escritores de ficção científica sobre o futuro do espaço de comunicações à distância (ciberespaço), apresentada em 1996 numa conferência sobre “Computadores, Liberdade e Privacidade”, de que “policiamento ubíquo” possibilitado por “sistemas distribuídos granulados,” nos quais a tecnologia que moldaria nosso futuro modus vivendi também alimentaria dados para, e aceitaria comandos do governo, apresentou um argumento contra a crença então predominante de que o ciberespaço (ou espaço virtual) estava além do alcance da regulação do espaço real e que os governos não teriam ingerência sobre a vida online, e portanto esta última seria diferente, e separada da dinâmica da vida offline.
(Os dois escritores foram: Vernor Vinge, autor de Rainbow’s End (Tor Books, 2006), mais conhecido por seu ensaio de 1993 "The Coming Technological Singularity" no qual argumenta que o crescimento exponencial em tecnologia atingirá um ponto além do qual não conseguiremos sequer especular sobre as conseqüências, e Tom Maddox, um dos pioneiros do movimento chamado “cyberpunk”, e inventor do termo “Intrusion Countermeasures Electronics” (ICE) usado na literatura cyberpunk para se referir a programas de segurança que protegem dados computadorizados do acesso por hackers).
A arquitetura que possibilitaria isso já estava sendo montada—era a internet. À medida que essa rede que permitiria tal controle se tornasse mais integrada em cada aspecto da vida social, seria apenas uma questão de tempo, segundo dizia Vinge, até que os governos tomassem o controle sobre partes vitais desse sistema. Também, à medida que o sistema amadurecesse, cada nova geração do código do sistema aumentaria o poder do governo.
Nossas vidas digitais – e, cada vez mais, nossas vidas físicas – seriam vividas num mundo de regulação perfeita, e a arquitetura dessa computação distribuída – o que hoje chamamos de internet – tornaria a perfeição regulatória possível. Na visão de Maddox o poder do governo não viria apenas dos chips, mas seria reforçado por uma aliança entre governo e comércio. (Curiosamente, hoje vivemos um clima de alta tensão entre as indústrias fonográfica e cinematográfica e o usuário da rede que deseja compartilhar arquivos. A Recording Industry Association of America (RIAA) já processou mais de 30.000 consumidores, entre eles muitos adolescentes, acusando-os de compartilhar arquivos protegidos por direitos autorais.)
Em Code 2.0 (Basic Books, 2006) Lessig define “regulabilidade” (por lei) como sendo a capacidade de um governo regular o comportamento dentro de seu alcance apropriado. No contexto da internet, isso representa a capacidade do governo de regular o comportamento de (pelo menos) seus cidadãos enquanto estejam na rede. Para regular bem, é preciso saber (1) quem alguém é, (2) onde ele(a) está, e (3) o que ele(a) está fazendo. Mas devido à forma pela qual a internet foi originalmente desenhada, não há uma maneira simpes de se saber nem (1), nem (2), e muito menos (3).
Portanto, à medida que a vida se mudou para essa versão da internet, a regulabilidade dessa vida diminuiu. A arquitetura do espaço – pelo menos como ele era – tornou a vida nesse espaço menos regulável. Porém, eis que surge a “regulabilidade por código”: existe regulação de comportamento na internet, mas essa regulação é imposta principalmente através do código “executável” (i.e., software). As diferenças nas regulações efetuadas através desse tipo de código distinguem diferentes partes da internet. Em alguns lugares, a vida é razoavelmente livre; em outros lugares, é mais controlada. E a diferença entre esses espaços é simplesmente uma diferença na arquitetura de controle – ou seja, uma diferença no código.
Mais adiante Lessig argumenta que não é da natureza do ciberespaço ser não-regulável; o ciberespaço não tem "natureza." Simplesmente tem código – o software e o hardware que faz do ciberespaço o que ele é. Esse código pode criar um espaço de liberdade – como o fez a arquitetura original da internet – ou um lugar de controle opressor. Sob a influência do comércio, o ciberespaço está se tornando um espaço altamente regulável, onde o comportamento é muito mais rigidamente controlado do que no espaço real.
Segundo o Editorial Review, isso também não é inevitável. Podemos – devemos – escolher que tipo de ciberespaço desejamos e que liberdades serão asseguradas. E essas escolhas são todas sobre arquitetura: que tipo de código governará o ciberespaço, e quem o controlará. Nesse universo, o código é a forma mais significativa de lei, e está na mão dos responsáveis por políticas públicas, e especialmente os cidadãos, a decisão sobre que valores esse código deve encorpar.
Numa resenha no portal Amazon.com, Olly Buxton entende que a conclusão de Lessig é a de que é preciso rejeitar completamente a postura utópica e ingênua comum nos cidadãos da internet, de que os controles legais tradicionais estão mortos e que a chamada “Web 2.0” nos garante um eterno estado de contentamento. É importante estar ciente de que, bem ao contrário, a Web 2.0 é “arquitetada” para permitir regulação máxima concebível, e que as atividades online são suscetíveis a uma regulação total que, offline, nunca seria factível.
Tudo isso deve servir como uma lembrança de como devemos permanecer de olhos abertos para a enorme importância do “código” e outras facetas da tecnologia da informação na moldagem das possibilidades humanas. Até no quesito dominância no cenário mundial, esse é um fator crucial. Em suas previsões sobre a influência dos Estados Unidos no contexto global, George Friedman, cientista político americano, autor de vários livros (America’s Secret War, The Intelligence Edge, The Future of War) e especialista em sistemas de defesa e inteligência, menciona o fato de que as economias mundiais baseadas na língua inglesa terão uma grande vantagem pois a maioria dos códigos de programação estão principalmente em inglês.
Outro influente especialista mundial em políticas de tecnologia e lei, Joel Reidenberg (professor da Faculdade de Direito da Fordham University) diz que lei e regulação governamental não são as únicas fontes de estabelecimento de regras para o comércio internacional. As capacidades tecnológicas e as escolhas no desenho do sistema impõem regras aos participantes. A criação e a implementação de políticas de informação estão embutidas em desenhos e padrões de rede assim como em configurações de sistemas.
Até mesmo as preferências dos usuários e as escolhas técnicas criam regras locais superabrangentes. Por sua vez, Danielle Citron, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Maryland, especialista em Tecnologia e Políticas Públicas, computadores hoje em dia encerram os benefícios do Medicaid (sistema americano de baixa renda), removem eleitores de listas de votação, impedem passageiros de voar em linhas aéreas comerciais, rotulam (muitas vezes erroneamente) indivíduos como pais que fogem à responsabilidade pelo sustento dos filhos, e marcam pessoas como possíveis terroristas a partir de suas mensagens eletrônicas ou registros telefônicos.
Ao mesmo tempo, a automatização prejudice a elaboração participativa de regras e políticas coletivas. Programadores, segundo Citron, rotineiramente alteram as políticas quando as traduzem da língua natural para código em linguagem de programação. Quando o sistema não é de código aberto isso ainda é mais grave, pois impede que indivíduos e até mesmo tribunais avaliem até que ponto o código diverge das regras estabelecidas. Nesses casos, aos programadores está sendo delegada a escolha não-escrutinada de formulação de políticas.
Conforme conclui Calo, se Lessig, Friedman, Joel Reidenberg, Danielle Citron, e tantos outros estiverem certos, o cerne do poder pode estar se deslocando: pode estar saindo das mãos dos profissionais da lei, e caindo nas mãos daqueles que criam, programam e mantêm as tecnologias da informação que invadiram nossas vidas.
Resta-nos permanecer vigilantes e cientes de que as decisões que tomamos quando assentamos os fundamentos do novo mundo terão um impacto sobre a estrutura da sociedade humana que transcende aquele de qualquer desenvolvimento tecnológico anterior. Se, ao desenharmos esse novo mundo, não levarmos em conta a liberdade de expressão, a privacidade e a segurança de uma maneira que reflita a primazia do indivíduo, nossa tecnologia irá impor uma ordem social na qual o indivíduo é subordinado às instituições cujos interesses foram prioritários no desenho.
PS: Ruy é professor associado do Centro de Informática da UFPE e escreve para o Blog de Jamildo sempre às segundas.
Blog de Jamildo, Jornal do Commercio (Recife), 09/03/09, 09:33hs, http://jc3.uol.com.br/blogs/blogjamildo/canais/artigos/2009/03/09/codigo_e_poder_na_sociedade_da_informacao_42365.php
Nenhum comentário:
Postar um comentário