Cidadão versus Grande Corporação: O Caso Comcast e Topolski
Um tanto quanto emblemático o caso do cidadão comum norte-americano que se saiu vitorioso numa disputa sobre questões legais e tecnológicas contra uma megacorporação: Robb Topolski, especialista em tecnologias de redes de computadores tomou por capricho mostrar ao mundo que a Comcast estava agindo de modo reprovável e contra os seus próprios clientes, e após cerca de um ano de disputas envolvendo duas audiências públicas, uma em Harvard e outra em Stanford, finalmente conseguiu seu intento.
Ano de 2008. O cenário é a internet, e os personagens principais são a Comcast, grande empresa de TV a cabo e maior provedora residencial de serviços de internet dos Estados Unidos, e seus clientes que compartilham arquivos, entre os quais está Robb Topolski. Os principais delitos: a violação dos princípios de neutralidade da rede, a falta de transparência, a invasão de privacidade, e a perjúria.
Conforme a Wikipedia, uma rede neutra é aquela que é livre de restrições sobre os tipos de equipamento que nela pode ser ligado, e os modos de comunicação permitidos; que não restringe conteúdo, portais ou plataformas; e onde a comunicação não é degradada sem motivos razoáveis por outros fluxos de comunicação.
Segundo Lawrence Lessig, a internet é um motor de crescimento econômico e inovação devido ao princípio simples da neutralidade da rede, que assegura aos inovadores que sua próxima grande idéia estará disponível aos consumidores, independente do que dela pensam os donos da rede. A esses donos da rede, tipicamente os chamados provedores de serviços, se não for exigido o respeito aos princípios de neutralidade, no momento em que eles também participam do mercado de fornecimento de conteúdo, a tentação de apelar a práticas anti-competição bate logo à sua porta.
Numa palestra ao encontro sobre a internet e os princípios de neutralidade da rede intitulado “The Policy Implications of End-to-End” (em 01/12/2000), organizado em Stanford pelo próprio Lessig, Gerald Faulhaber, Professor Emérito de Negócios e Políticas Públicas da Escola Wharton de Economia da Universidade da Pennsylvania declarava: “Adam Smith, que todos chamamos de maior defensor do livre mercado, foi o primeiro a chamar a atenção para o fato de que produtores nunca se encontram, mas que eles conspiram contra o público. Produtores sempre estiveram tentando descobrir como monopolizar e senão obter mais lucros do público. E foi só porque houve um grande número deles competindo que eles não conseguiram fazer isso. Mas, não obstante, eles continuam tentando. (…) Mas os produtores vão sempre buscar maneiras de fugir à competição (…) seja através de marketing, de prender o consumidor à sua marca, com política predatória de preço, com efeitos em rede, etc . E a tecnologia é simplesmente um conjunto a mais de variáveis estratégicas em sua aljava. Será que vamos estruturar nossa tecnologia de modo que ela essencialmente nos permita construir barreiras à entrada? Onde se encontra o argumento fim-a-fim (“end-to-end”) em tudo isso? Se pudermos traduzir isso em termos de economia global, aquele fim-a-fim em engenharia é o equivalente do mercado competitivo perfeito que os economistas conhecem e adoram. É a coisa que torna tudo isso transparente, é aberto, qualquer um pode fazer qualquer coisa.”
A premonição de Faulhaber não demorou a se concretizar. Cerca de 6 anos depois da palestra, a Comcast, também fornecedora de serviços de conteúdo de vídeo e de música, mas atuando na qualidade de provedora de serviços de acesso à internet, e sob o pretexto de administração da qualidade de serviço na sua rede, passou a interferir na comunicação entre usuários que desejavam compartilhar músicas e filmes através do serviço “peer-to-peer” (P2P) oferecido pela empresa BitTorrent, usando protocolo de mesmo nome e que se tornou quase sinônimo de “compartilhamento ilegal de conteúdo protegido por direitos autorais”. E fez de tudo para esconder tais práticas de tentar fugir à competição.
Há registros de que, lá pelos idos do mês de Março de 2007, a Comcast recomendou a seus funcionários a não comentar quando clientes perguntassem sobre notícias então recentemente veiculadas na Associated Press de que ela havia contratado um serviço de sabotagem de BitTorrent a uma empresa chamada Sandvine, ou mesmo discutir que exista um relacionamento entre as duas empresas. (A propósito, já se sabia à época que a Sandvine tem na sua carteira de clientes os governos de diversos países que praticam a censura a conteúdos da internet.) Não adiantou: o portal da Reuters acabou trazendo matéria em 27/04/07 relatando que a revista financeira da Barron havia noticiado que a Comcast figurava na carteira de clientes da Sandvine. Em diversos fóruns de usuários do serviço “eMule” já havia registro em meados de 2006 de suspeitas de que a Comcast estaria bloqueando o protocolo BitTorrent. Vários registros davam conta de que a Comcast estaria bloqueando “uploads” solicitados por conexões de eMule/eDonkey/Kad. Um dos registros, datado de 16/08/06, diz: “recomendo fortemente procurar outro provedor de serviço a quem quer que deseje utilizar o serviço eMule”. Em 19/10/2007 a Electronic Frontier Foundation (EFF), grande baluarte dos direitos civis na internet, já registrava em seu portal (e posteriormente num relatório intitulado “Packet Forgery By ISPs: A Report On The Comcast Affair”, por Peter Eckersley, Fred von Lohmann e Seth Schoen) a notícia de que havia confirmado através de testes as alegações da Associated Press de que a Comcast estava forjando pacotes de TCP RST que causa a interrupção de conexões. Trata-se de uma técnica utilizada pelos serviços de censura de internet na China: esses pacotes têm o efeito de levar ambos os lados da conexão a acreditar, erroneamente, que o outro não mais deseja continuar a comunicação. Para embasar uma ação judicial, seria preciso reunir evidências tecnicamente inequívocas de que tal prática estaria ocorrendo.
Eis que surge o cidadão Robb Topolski, especialista em tecnologias de redes de computadores e blogueiro (“Robb Topolski’s Journal – Every Day is a Miracle – Every Meal is a Feast”), que, usando tracejamento de pacotes e comparações fim-a-fim entre conexões Comcast e não-Comcast, concluiu que “TCP Reset flags” estavam sendo usadas para derrubar conexões P2P quando o par que fazia o “upload” estava na rede da Comcast. Na audiência pública em Stanford organizada pela Federal Communications Commission, Topolski declara: “Não conseguí fazer upload de certos conteúdos legais e históricos da época de Tin-Pan Alley e Barbershop Quartet – 24 horas por dia, durante meses.” (…) “Investigando essa tecnologia ainda mais, descobrí que era universalmente considerada inaceitável – é o mesmo método usado por ‘The Great Firewall of China’.” (O termo é na verdade um jogo de palavras: “the great wall of China” se refere à grande muralha, porém “firewall” é um tipo de programa de computador usado para bloquear a entrada de conteúdos indesejados, tais como vírus de computador.) De posse dos subsídios reunidos por Topolski, duas organizações não-governamentais de defesa dos direitos civis na internet, a “Free Press” e a “Public Knowledge”, entraram com uma interpelação junto à Federal Communications Commission (FCC), que ao acatar, deu início a um processo cujo desenrolar levou à condenação pública da Comcast e ao inevitável constrangimento de ver desmentidas todas as alegações aparentemente razoáveis de ter agido exclusivamente em nome das “melhores práticas” de administração da qualidade de serviço.
Duas audiências públicas foram organizadas pela FCC: uma em 25/02/2008 em Harvard, com a presença de representante da Comcast (David Cohen, Vice Presidente Executivo), e outra em 17/04/2008 em Stanford, esta última sem a presença de representante da Comcast. A ausência da empresa na segunda audiência pode ter relação com o constrangimento público por que passou a Comcast ao admitir que contratou (e pagou) transeuntes para ocupar lugares na fila de entrada para a primeira audiência pública. A justificativa foi de que seus funcionários teriam interesse em participar mas não teriam condições de passar o dia esperando na fila. Justificativa razoável ou não, o certo é que no dia seguinte saiu uma matéria no portal Portfolio.com (“Grassroots Support? Or Astroturf?”, por Sam Gustin, 26/02/08) com fotos de alguns desses supostos contratados em pleno sono durante a sessão no auditório da Faculdade de Direito de Harvard onde foi realizada a audiência.
O desfecho parecia inevitável. Em 01/08/08 a FCC decidiu, por uma votação apertada (3-2), punir a Comcast por sua “interferência subreptícia” com uploads BitTorrent, e emitiu uma ordem declarando que a Comcast tinha violado os princípios de neutralidade estabelecidos na “Declaração de Políticas de Internet” da FCC de 2005, e que portanto deveria parar com tais práticas e dar mais transparência aos seus métodos de administração da rede.
No documento oficial enviado à Comcast, Kevin Martin (Chairman da FCC), se pergunta “seria correto se a empresa de correios abrisse sua correspondência, decidisse que não queria entregá-la, e escondesse esse fato enviando-a de volta a você com o carimbo de ‘endereço desconhecido – retorne ao remetente’? Ou seria correto, quando alguém lhe envia uma carta de primeira-classe, se a empresa de correios a abrisse, decidisse que devido ao fato de que o caminhão de entrega às vezes está lotado, as cartas para você poderiam esperar, e então escondesse que leu suas cartas e as retardou?”
O veredito de Martin foi implacável: “Diferente do que disse a Comcast, ela bloqueou usuários que estavam usando muito pouco de largura de banda simplesmente porque estavam usando uma aplicação preterida. Diferente do que disse a Comcast, ela não afetou outros usuários que estavam também usando uma quantidade extraordinária de largura de banda mesmo durante períodos de congestão de rede desde que ele/ela não estivesse usando uma aplicação preterida. Diferente do que disse a Comcast, ela retardou e bloqueou usuários que usavam uma aplicação preterida mesmo quando não havia congestão na rede. Diferente do que disse a Comcast, a atividade se estendeu a regiões muito maiores que a área onde ela diz que ocorreu congestão de rede.”
À medida que o caso se desenrolava, a EFF cuidava de disponibilizar gratuitamente a todos os cidadãos da rede uma página intitulada “Teste seu provedor”: “No mínimo, consumidores merecem uma descrição completa do que eles estão obtendo quando eles compram ‘acesso ilimitado à Internet’ de um provedor. Somente se eles souberem o que está acontecendo e quem deve ser responsabilizado por interferência deliberada podem os consumidores fazer escolhas informadas sobre quais provedores eles preferem (desde que eles tenham escolha entre provedores residencias de banda-larga) ou que contra-medidas eles poderiam empregar. Os responsáveis pelas políticas públicas também precisam entender o que está realmente sendo feito pelos provedores de modo a desmontar a retórica evasiva e ambígüa empregada por alguns provedores para descrever suas atividades de interferência.”
Além da conscientização, a EFF disponibilizou a ferramenta de teste de rede denominada “Switzerland Network Testing Tool”: “Seu provedor está interferindo com suas conexões BitTorrent? Cortando suas chamadas VOIP? Minando os princípios de neutralidade da rede? Para responder a essas questões, usuários de Internet precisam de ferramentas para testar suas conexões de Internet e coletar evidência sobre práticas de interferência do provedor.”
Enfim, de posse de ferramentas apropriadas (Switzerland não é a única: Gemini, Glasnost, ICSI IDS, NDT, NNMA, pcapdiff, WebTripwires também fazem seu papel), cabe ao cidadão tomar o exemplo de Topolski como referência importante, e contribuir para uma internet livre de interferências indevidas.
Em apoio à decisão da FCC, Topolski enviou carta oficial àquela agência reguladora no mesmo dia da divulgação oficial dizendo: “A FCC tomou uma decisão sábia hoje, decisão esta que envia uma mensagem a provedores de serviços de internet de que a Agência está vigilante, que ela entende que a internet envolve um novo conjunto de desafios técnicos, e que a Agência está disposta a agir de uma maneira que reforce o sucesso da internet como um todo”.
Resta-nos tirar o chapéu para esse cidadão.
Ruy de Queiroz é PhD em Computação pelo Imperial College, Universidade de Londres. Atualmente trabalha na elaboração de um projeto de criação de um Centro de Estudos de Internet e Sociedade no âmbito da UFPE.
Blog da Série "Selva Digital", Canal GNT (Globosat), 06/04/2009, http://colunas.gnt.com.br/selvadigital/2009/04/06/cidadao-versus-grande-corporacao-o-caso-comcast-e-topolski/
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