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segunda-feira, 8 de março de 2010

Atos de Bondade Altruísta na Internet e o Trabalho nas Nuvens

Atos de Bondade Altruísta na Internet e o Trabalho nas Nuvens

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8 de março de 2010 - Um ato de bondade altruísta é um ato desprovido de interesse próprio, realizado com o único fim de trazer benefício a um ser vivo. Espontâneo ou planejado, trata-se de um ato desinteressado com vistas unicamente a servir, a fazer o bem.

Lembrando as origens da própria arquitetura da internet, Jonathan Zittrain, destacado estudioso das repercussões e tendências legais e sociais da rede mundial de computadores, em palestra ao portal TED em Julho/2009 intitulada “The Web as random acts of kindness” (“A Web como atos de bondade altruísta”), chama a atenção para o ethos da arquitetura de comunidade de boa-vontade trazido por Vint Cerf e Bob Kahn, considerados fundadores da internet: ao mesmo tempo em que tinham uma grande limitação, dispunham de uma enorme liberdade, pois mesmo sem dinheiro eram livres para espontaneamente experimentar com protocolos de comunicação entre computadores de origens diversas independentemente de ordem superior ou fins lucrativos. A internet, afirma Zittrain, é feita de milhões de atos desinteressados de gentileza, curiosidade e confiança. O próprio sistema de endereçamento e roteamento da internet está assentado sobre a bondade e a confiança: os pacotes de comunicação navegam pela rede desde o emissor até o destinatário, às vezes tendo que passar por 25 ou 30 pontos intermediários que os reencaminham mesmo sem obrigação contratual ou legal de fazê-lo.

Exemplo canônico desse altruísmo é descrito por Zittrain no parágrafo inicial de seu artigo “Work the New Digital Sweatshops” (Newsweek, 08/12/09): logo após a devastação de Nova Orleans pelo furacão Katrina em 2005, a Cruz Vermelha anunciou uma linha telefônica gratuita para ajudar as vítimas e suas famílias a se encontrarem, porém a demanda foi tamanha que tornou-se congestionada e inoperante. A Cruz Vermelha então convocou a LiveOps, empresa de internet fundada em 2000, uma espécie de “call-center nas nuvens” que recruta agentes de todas as partes do mundo e coordena suas ações pela internet, e, em 3 horas estava formada uma rede de cerca de 300 telefonistas. Resultado: mais de 17 mil chamadas foram processadas em poucos dias.

Segundo Zittrain, trata-se de um exemplo de um novo fenômeno conhecido como “crowdsourcing” na internet, neologismo em inglês resultante da combinação de “crowd” (multidão) e “outsourcing” (terceirização): usar a internet não apenas para agregar e acessar poder computacional, mas também encontrar e direcionar poder cerebral. Em outras palavras, pegando carona no conceito de “computação nas nuvens” (i.e., programas aplicativos executam em servidores ao qual seu computador se conecta), algumas empresas estão promovendo o que se chama de “trabalho nas nuvens”, idéia que começou a se firmar no mundo pós-crise financeira. É como se a computação nas nuvens não mais se limitasse à computação propriamente dita: agora é possível encontrar também nas nuvens o poder de trabalho mental tanto quanto se deseja. Diversos projetos estão fazendo com que o poder cerebral humano seja tão passível de compra e tão fungível (i.e., suas unidades são substituíveis) quanto memória em servidor nas nuvens. Como seria de se imaginar, isso tanto pode criar novas oportunidades e ganho de produtividade nunca dantes imaginados, como pode dar origem a uma nova era de empregos escravizantes, dessa vez digitais, cibernéticos.

Em palestra no Berkman Center (Harvard) intitulada “Minds for sale” (“Mentes à venda”), inicialmente proferida em 18/11/09, e reprisada em 22/02/10, Zittrain revela sua preocupação com o fato de que tais desenvolvimentos podem vir a minar a prática de certas “tecnologias cívicas” nas quais indivíduos não-conectados se juntam de forma voluntária para a obtenção de algum objetivo que não poderia ser alcançado por cada um isoladamente. É inegável que a internet hoje está repleta de oportunidades para se engajar em tarefas que de alguma maneira beneficiam uma empresa ou uma organização. No extremo da especialização estão portais como o Innocentive, empreendimento fundado pelo gigante da indústria de fármacos Eli Lilly. Funciona como se fosse um eBay para problemas difíceis. As empresas depositam as questões para as quais não conseguem as respostas dentro dos seus muros (como, por exemplo, encontrar uma fórmula para evitar que o suco de laranja não escureça na embalagem), e estabelecem uma boa recompensa para quem responder dentro de um prazo estabelecido. No outro extremo estão tarefas que requerem pouca ou nenhuma habilidade em troca de pagamentos minúsculos. O portal mais conhecido nessa classe é o “Mechanical Turk” (“Turco Mecânico”) da Amazon.com, que funciona como plataforma para resolução de “Human Intelligence Tasks” (“tarefas de inteligência humana”, abrev. HIT): por exemplo, uma tarefa exibe imagens e solicita ao “turco” que as rotule com palavras-chave, pagando 1 centavo por cada palavra, enquanto que outra requer que se envie o endereço eletrônico de donos de cafeteria, pagando 1 dólar por endereço.

Do ponto de vista do trabalhador nas nuvens, Zittrain enumera algumas conseqüências nefastas: (i) alienação, em razão de não ser garantido ao trabalhador ver o resultado de seu trabalho mas apenas uma pequena parte do todo; (ii) valência moral, dado que em geral o trabalhador não tem sequer idéia de quem o contratou e para qual propósito; (iii) malversação, visto que ao trabalhador não é garantido o direito de opinar sobre como seu trabalho é usado; (iv) perda de direitos, pois não há proteção trabalhista para os que trabalham online. Em razão do fato de que as HIT’s são tipicamente tarefas simples e repetitivas, redundando em pagamento de baixo valor, há quem se refira ao Mechanical Turk da Amazon como uma espécie de “estação virtual de trabalho escravo”. Além do mais, como os trabalhadores são pagos como mão de obra terceirizada, as empresas requisitantes dos serviços não precisam pagar os benefícios tampouco os impostos trabalhistas, fugindo inclusive das obrigações em termos de salário mínimo, hora extra, etc. Isso sem falar nos casos em que a empresa se esquiva do pagamento por uma tarefa já realizada.

Entre as preocupações sistêmicas está a possibilidade do trabalhador nas nuvens se tornar cúmplice dos esforços de governos totalitários, dadas as condições de valência moral e malversação: a tarefa pode ser colocada, por exemplo, em termos da associação de fotos de participantes de passeata de protesto político a fotos retiradas de banco de dados de carteiras de identidade dos cidadãos.

Mesmo reconhecendo a dificuldade de lidar com esses problemas, Zittrain sugere algumas respostas que vão desde encontrar maneiras de aplicar padrões de trabalho de modo que aqueles que dedicam muito tempo trabalhando em algo como LiveOps tenham alguma proteção, até forçar que as empresas revelem o resultado pretendido do conjunto de tarefas de sorte que o usuário possa tomar decisões mais bem informadas sobre como vai usar seu tempo online.

Fica patente o quão fina é a linha que separa a exploração do trabalho voluntário no contexto das comunidades online e a tão bem-vinda colaboração.

Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE

Investimentos e Notícias (São Paulo), 08/03/2010, 13:30hs, http://www.investimentosenoticias.com.br/ultimas-noticias/artigos-especiais/atos-de-bondade-altruista-na-internet-e-o-trabalho-nas-nuvens.html


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