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segunda-feira, 1 de março de 2010

A Sinalética Digital e a Sociedade Espelho-Unidirecional

A Sinalética Digital e a Sociedade Espelho-Unidirecional

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1º de março de 2010 - Tudo está tal qual se espera quando as normas que regulam o mundo virtual decorrem essencialmente das leis que regulam o mundo real. Nos dias atuais, entretanto, o que se observa é o mundo real adotar normas surgidas no mundo virtual. Veja-se, por exemplo, o caso dos anúncios online. A busca por maior eficácia e por um melhor retorno-no-investimento encontrou no conceito de “anúncio direcionado baseado no comportamento” (em inglês, “targeted behavioral advertising”) a chave para um crescimento galopante da indústria de anúncios na internet, e até uma mudança de paradigma.

Tudo isso porque o anúncio online se presta a sofisticadas análises de impacto e de agregação, pois é possível rastrear e traçar o perfil de preferências do usuário com base no seu histórico de navegação, além de medir o grau de sucesso da campanha publicitária, permitindo o ajuste da estratégia em tempo real. Pois bem, a indústria do anúncio “offline”, isto é, dos outdoors e painéis visuais, resolveu se apropriar do que ocorre no mundo online e já adotou a contrapartida do anúncio direcionado, dessa vez no mundo real. Por exemplo, empresas de anúncio em outdoor eletrônico já se aproveitam da capacidade de escutar o que o cidadão está tocando no seu aparelho de som no automóvel para modificar apropriadamente o conteúdo do outdoor. Além do mais, não é incomum anunciantes instalarem câmeras em outdoors eletrônicos para capturar informações sobre as pessoas que se defrontam com o anúncio, e aí ajustar em tempo real a forma e o conteúdo da mensagem publicitária conforme o sexo, a raça e outros elementos específicos da aparência ou do comportamento do cidadão.

Em artigo intitulado “The True Danger Of The Internet: What Occurs To Us” (Center for Internet and Society, Stanford University, 30/03/09), Ryan Calo já chamava à atenção para o fato de que o aspecto mais interessante do ciberespaço não é o que acontece por um determinado período de tempo com seus visitantes, tampouco a ausência de regulação ou a presença de regulação perfeita, muito menos a assombrosa variedade de conteúdo ou a constante ameaça de monitoramento. O aspecto mais interessante do ciberespaço reside precisamente no seu papel de motor de realização. O ciberespaço parece ampliar os horizontes do que consideramos como possível. É como se a rede mundial estivesse servindo de berço para fenômenos que nunca aconteceram antes, não por restrições impostas pela tecnologia, mas simplesmente porque ninguém havia pensado neles até então. Fazendo referência à observação profundamente perspicaz de Jonathan Zittrain no que diz respeito ao fato de que nos deparamos com os desafios sociais mais assustadores no exato momento em que começamos a suplantar grandes obstáculos tecnológicos de todos os tipos, Calo conclui que o resultado é que há por todo lado tanto o desejo quanto o meio para se proceder à regulação por design em detrimento da regulação por lei. E, se assim o é, deveríamos esperar—e estarmos dispostos a exigir—que qualquer novo design venha a refletir um conjunto de valores que consideramos fundamentais.

Em relatório intitulado “The One-Way-Mirror Society: Privacy Implications of the new Digital Signage Networks” (“A Sociedade Espelho-Unidirecional: Implicações à Privacidade das Novas Redes de Sinalética Digital”, 27/01/10), Pam Dixon, fundadora e diretora-executiva da ONG “World Privacy Forum” faz um alerta: novas formas de redes de sinalética digital sofisticadas estão sendo amplamente empregadas pelo setor de vendas a varejo, em espaços públicos e privados. “De sensores de contagem de pessoas montadas em vãos de portas a câmeras sofisticadas de reconhecimento facial instaladas em telas de vídeo planas, tecnologias de sinalética digital estão ajudando a coletar cada vez mais informações detalhadas sobre consumidores, seus comportamentos, e suas características.” (Conforme a Wikipedia, sinalética digital – do inglês, “digital signage” – é um tipo de painel informativo tipicamente colocado em espaços públicos, utilizado normalmente para informar, divulgar ou simplesmente distrair.)
A grande preocupação é que essas tecnologias estão rapidamente se tornando ubíquas no mundo real, e, em contrapartida, pouca ou nenhuma advertência aos consumidores de que informações sobre características comportamentais e pessoais estão sendo coletadas e analisadas para, entre outras coisas, produzir anúncios altamente direcionados. E aos consumidores não está sendo concedido o direito de ver ou mesmo entender as informações que estão sendo coletadas sobre eles, o que lhes impossibilita de enxergar o quanto ou de que forma essas informações estão impactando as oportunidades que lhe estão sendo oferecidas ou mesmo negadas. Falta essencialmente transparência no que diz respeito às estruturas e aos métodos comerciais empregados, que, em sua sofisticação e complexidade, acabam desafiando as expectativas de privacidade de cada consumidor, sobretudo quando são utilizados para compilar registros e fatos que venham a se constituir em um verdadeiro “registro permanente moderno” que acompanha o consumidor e influencia sua qualidade de vida, em geral sem o seu conhecimento. (O histórico de crédito do cidadão americano, por exemplo, lhe persegue por toda parte.)

Se, por um lado, os consumidores entendem a necessidade de haver cameras de segurança, poucos esperam que a tela de video a que estão assistindo, ou a cabine telefônica na qual estão digitando um número de telefone, ou mesmo o painel de um jogo com o qual estão interagindo está coletando imagens e informações comportamentais sobre eles. Segundo Dixon, “isso está criando uma sociedade espelho-unidirecional sem qualquer aviso ou oportunidade concedida aos consumidores a consentir ser monitorado em centros comerciais, espaços públicos e privados, ou a consentir que seu comportamento seja analisado para fins de marketing e de lucro. As redes de sinalética digital, se não forem devidamente regulamentadas, muito provavelmente se constituirão numa nova forma de monitoração de marketing sofisticada que levarão a abusos das informações coletadas.” Entre os mais intoleráveis desses abusos está certamente a discriminação de preço.

Já em 2003 no artigo “Privacy, economics, and price discrimination on the Internet”, apresentado na “5ª Conferência Internacional sobre Comércio Eletrônico”, realizada em Pittsburgh (Pennsylvania), Andrew Odlyzko argumentava que a forte tendência ao ataque à privacidade proveniente do setor privado era motivada pelos incentivos a discriminar preços, a cobrar preços diferentes a diversos consumidores pelos mesmos bens ou serviços. A corrosão da privacidade em decorrência da coleta de dados para aprender mais sobre a disposição do consumidor em pagar, e também controlar a arbitragem na qual alguém que se depara com um preço alto acaba comprando de um intermediário que consegue um preço mais baixo. O ponto chave, segundo Odlyzko, é que a discriminação de preço propicia um lucro mais alto que qualquer campanha de marketing direcionado.

Entre as recomendações do relatório de Dixon para minimizar os danos trazidos pela tecnologia da sinalética digital encontram-se: (i) melhor aviso e advertência aos consumidores; (ii) nada de auto-regulação pela própria indústria; (iii) nada de discriminação de preço ou qualquer outra discriminação injusta; (iv) aplicação do conjunto de práticas de informação justas (estabelecidas pela Federal Trade Commission) aos dados coletados; (v) aviso aos consumidores sobre eventuais intimações judiciais para o fornecimento de suas informações; (vi) proibição de sinalética digital em sanitários públicos, postos de saúde e hospitais, etc.; (vii) escolhas mais robustas do consumidor no que concerne à captura e ao uso de dados da sinalética; (viii) regras especiais para a coleta e o uso de imagens e informações sobre crianças.

Em meio a uma transição de um mundo analógico para um mundo digital, é fundamental questionar quais mudanças o novo mundo nos traz, quais novos controles e novas normas chegam em seu bojo, e o que isso significa para a vida cotidiana. É imperativo buscar o equilíbrio entre os benefícios, os riscos e os danos.

(Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE)

Investimentos e Notícias (São Paulo), 01/03/10, 08:55hs, http://www.investimentosenoticias.com.br/ultimas-noticias/artigos-especiais/a-sinaletica-digital-e-a-sociedade-espelho-unidirecional.html

Blog de Jamildo (Jornal do Commercio Online, Recife), 01/03/10, 14:13hs, http://jc3.uol.com.br/blogs/blogjamildo/canais/artigos/2010/03/01/a_sinaletica_digital_e_a_sociedade_espelhounidirecional_65084.php

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