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segunda-feira, 30 de março de 2009

Jornais e jornalismo na era do tempo real

OPINIÃO / ARTIGO

Jornais e jornalismo na era do tempo real

POSTADO ÀS 08:24 EM 30 DE MARÇO DE 2009

Por Ruy José Guerra Barretto de Queiroz

A internet mais parece um asteróide que atingiu o jornal impresso com toda a força: enquanto que na era industrial a informação era escassa, cara, institucionalmente orientada, e concebida para consumo, na era digital a informação é abundante, barata, pessoalmente orientada, e concebida para a participação. Os números mais recentes falam por si: em 2000, 46% de adultos usavam internet, 5% com banda larga em casa, 50% tinham celular, 0% se conectava à internet sem fio, menos de 10% usavam “nuvem” (conexões lentas, estacionárias em torno de meu computador); em 2008, 74% de adultos usavam internet, 58% com banda larga em casa, 82% tinham celular, 62% se conectavam à internet sem fio, mais de 53% usavam “nuvem” (conexões rápidas e móveis em torno de servidores e armazenamento externos). 

Estatísticas recentes indicam que a partir de 2008 na resposta à pergunta “onde você obtém a maioria das notícias nacionais e internacionais?” a internet passou a ser mais citada que os jornais impressos, perdendo apenas para a televisão. Pesquisa da Nielsen revela que a partir do terceiro quadrimestre de 2008, o americano médio passa 142 horas na frente da TV em um mês (5 horas a mais que 2007). Além do mais, as pessoas que usaram a internet lhe dedicaram 27 horas por mês, e os que usaram celular gastaram 3 horas por mês assistindo a vídeos no seu aparelho móvel. 

O tempo médio que um domicílio usou um aparelho de TV no período 2007-08 aumentou para 8 horas e 18 minutos por dia, um recorde desde que a Nielsen começou a fazer medidas sobre a televisão nos anos 1950s. No final das contas, conforme o relatório da Nielsen, o que acontece é que pontos de interseção entre informação e pessoas se multiplicam e a disponibilidade da informação se expande a todas as horas do dia e todos os lugares em que estivermos. Isso sem falar no chamado fenômeno da atenção fragmentada: recurso escasso, “a atenção é a ferramenta mais poderosa do espírito humano” (Linda Stone, ex-executiva da Microsoft), e cada vez mais as pessoas vivem num estado de “atenção parcial contínua”. Tudo isso remando contra o jornal impresso como fonte de notícias.

Em tempos de implosão na indústria do jornal impresso, menos mal que há bom senso em meio à turbulência trazida pela internet e acentuada pela internet de tempo real: se para uns a morte dos jornais significa a morte do jornalismo, para outros o momento é bem apropriado para repensar e remediar as falhas do jornalismo, ao invés de acentuá-las. 

Em artigo recente no seu blog no portal do Center for Internet and Society de Stanford (“Amnesia in the Face of Crisis”, 19/03/09), Sarah Hinchliff, após lembrar que a geração mais jovem se mostra em grande medida indiferente enquanto que os mais velhos não vêem futuro no jornalismo sem o jornal impresso, diz que embora ninguém saiba exatamente o que vai acontecer na indústria do jornal impresso, fica claro que algo muito sério tem que acontecer. Há algum tempo Paul Gillin (Research Fellow e membro do conselho consultivo da “Society for New Communications Research”, co-coordenador do grupo de mídia social do “Massachusetts Technology Leadership Council”, e autor do blog “Newspaper Death Watch”), vem dizendo que o colapso quase que total da indústria americana do jornal como a conhecemos é inevitável. No artigo recente “Media Apocalypse Foretold” (24/03/09), Gillin diz que o céu está caindo, mas que não é somente para os jornais. 

Citando Bob Garfield (autor do livro “Chaos Scenario”, a ser publicado) destaca: em 2008, as vendas de bancas de revista caíram 12%, e ainda caíram mais 22% esse ano; a Bernstein Research prevê uma queda de 20% a 30% em 2009 na receita das TVs em anúncio; na última pesquisa, a Nielsen Media Research anunciou que a audiênca da CBS em horário nobre caiu 2,9%, a da ABC 9,7%, a Fox 17,5% e a NBC 14,3%.

Há quem chegue ao ponto de argumentar que a sociedade e a política americanas estão em vias de mudar para pior, devido especificamente à morte anunciada do jornal impresso (“Goodbye to the Age of Newspapers (Hello to a New Era of Corruption)”, por Paul Starr, professor de comunicação e negócios públicos na Woodrow Wilson School da Princeton University e autor do livro recente “Freedom's Power”(Basic Books), no portal The New Republic, 04/03/09). “Podemos estar nos aproximando não do fim dos jornais impressos, mas do fim da ‘era’ dos jornais impressos – a fase longa na história quando os jornais impressos nas principais cidades dos EUA têm sido fundamentais tanto à produção de notícias e quanto à vida de suas regiões metropolitanas. 

O argumento se baseia na hipótese de que com o colapso de alguns dos jornais tradicionais, de alguma forma a reportagem investigativa e a cobertura local não mais funcionarão, e isso significará uma nova era de corrução e o colapso da democracia. Em contraponto, Yochai Benkler (professor da Faculdade de Direito de Harvard, Co-Diretor do “Berkman Center for Internet and Society” de Harvard, e autor do livro “The Wealth of Networks: How Social Production Transforms Markets and Freedom”, Yale Univ Press, 2006) no artigo “Correspondence: A New Era of Corruption?” publicado no mesmo dia e no mesmo veículo, afirma que o declínio do jornal impresso não é um prenúncio de nada que se pareça com o fim da democracia.

Segundo Benkler, o argumento de Starr essencialmente considera que parte do coração da democracia norte-americana há muito tempo tem se apoiado nos monopólios de um-jornal-por-cidade e na falta de escolha de mídia. Nas palavras do próprio Starr, “mais que qualquer outro veículo, os jornais têm sido nossos olhos sobre o estado, nossa verificação sobre abusos privados, nossos sistemas de alarme cívico.” O fato é que o cotidiano da sociedade americana já de há muito conta com os jornais como parte da própria cultura, da política, dos negócios, que é fácil esquecer o quanto eles significam para o próprio modus vivendi americano. 

Starr prossegue lembrando que os bens públicos são notoriamente subproduzidos no seio da sociedade de consumo, e a notícia é um bem público – e ainda assim, desde meados do século XIX os jornais têm produzido notícias em abundância a um preço barato para os leitores e sem a necessidade de subsídio direto. Mesmo antes da chegada da recessão, a indústria do jornal impresso já se deparava com uma ameaça de morte a partir da ascensão da internet, da queda na circulação e na receita de anunciantes, e de um declínio de longo prazo na própria leitura na medida em que o hábito de se adquirir um jornal na esquina tem aos poucos desaparecido. A recessão apenas intensificou essas dificuldades, mergulhando os jornais numa espiral descendente da qual alguns podem não vir a se recuperar, e outros talvez emergirão apenas como uma sombra do que já foram.

Por sua vez, Benkler lembra que os chamados “diários” eram monopólios, e portanto podiam ditar os preços de anúncios. Isso alimentou uma certa morosidade a partir da qual os jornais se davam ao luxo de subsidiar aquelas partes do jornal que eram claramente bens públicos importantes – notícias e reportagem investigativa. Mas esses altos preços de anúncios estão se inviabilizando. Por outro lado, parte do papel democrático dos jornais tem sido a educação política das massas não engajadas. Ao querer consultar a seção de classificados à busca de empregos, ou a seção de esportes, o leitor inevitavelmente se confrontava com a primeira página, e, portanto, com um caso local de corrução ou algo de grande relevância pública. 

Tal exposição acidental induzia uma cidadania minimamente informada e capaz de verificar os piores excessos de governos corruptos. Com tudo isso, embora concordando com a previsão de Starr sobre os efeitos da diversificação da mídia e da competição no modelo tradicional da maioria dos jornais regionais dos EUA, Benkler se declara menos convencido de que os efeitos serão de fato tão danosos para a democracia. Não obstante, é preciso reconhecer que a dispersão da atenção, que se iniciou com as comunicações via cabo e o próprio rádio, e posteriormente coroada pela internet, tem levado a um público mais inerte e mais desinformado. Os membros da sociedade mais politicamente engajados têm feito uso da nova diversidade de ofertas para se juntarem e se tornarem melhor informados do que possivelmente poderiam ter sido no passado. Mas também têm se tornado mais partidários, conclui Benkler. Devido a esses efeitos casados, a derrocada do modelo de negócios (ainda do século XX) dos jornais de fato ameaça minar a forma como funciona a democracia americana e possivelmente uma nova era de corrução.

Por essas e outras, ao que tudo indica, à indústria do jornal não tem sido fácil aceitar o inevitável. No artigo “Newspapers and Thinking the Unthinkable” recentemente publicado em seu blog, Clay Shirky lembra que o problema que os jornais enfrentam não é exatamente que eles não viram a internet chegar, pois não apenas eles a viram já há tanto tempo que precisavam de um plano para lidar com o problema, e no início dos anos 1990s chegaram a formular vários. Um deles era se juntar à AOL, que parecia crescer rápido mas de forma menos caótica que a internet aberta. Outro era educar o público sobre o que se esperava dele com respeito às leis do direito autoral, e nesse contexto, novos modelos de pagamento, tais como o micropagamento, foram propostos. Alternativamente, os jornais poderiam reproduzir as margens de lucro obtidas pelo rádio e pela TV, caso se tornassem apoiados puramente em anúncios. Um outro plano seria convencer as empresas de tecnologia a tornar seu hardware e software menos capazes de compartilhar, ou então fazer parceria com as administradoras de redes de dados para chegar ao mesmo objetivo. 

E aí havia a opção chave: processar os violadores de direitos autorais diretamente, e dessa forma torná-los um exemplo a não ser seguido. À medida que essas idéias foram articuladas, havia intenso debate sobre os méritos de vários cenários, mas um cenário era largamente considerado como impensável, e sobre o qual não se discutiu muito na mídia, por razões óbvias. Esse cenário impensável se revelaria como algo da seguinte forma: a capacidade de compartilhar conteúdo não diminuiria, mas cresceria. O uso de cercas de proteção se revelaria impopular. Dessa forma, propaganda digital reduziria ineficiências, e, portanto, lucros. Uma certa rejeição por micropagamentos impedia que tivesse uso amplo. Velhos hábitos de anunciantes e leitores não se transfeririam para o ambiente online. Até disputa judicial feroz seria inadequada para conter a quebra massiva e sustentada da lei. Fabricantes de hardware e software não considerariam os detentores dos direitos autorais como aliados nem os consumidores como inimigos. 

A exigência do DRM (tecnologia de gerenciamento dos direitos digitais) de que, ao atacante seja permitido decodificar o conteúdo, seria uma falha insuperável. E aí, processar as pessoas que amam tanto uma coisa a ponto de quererem compartilhá-la as irritaria profundamente. Segundo Shirky, quando a realidade é chamada de impensável, ela cria uma certa doença numa indústria. Liderança passa a se basear em fé, enquanto que os empregados que têm receio de sugerir aquilo que parece estar acontecendo e está de fato acontecendo são conduzidos a departamentos de inovação, onde podem ser solenemente ignorados. Um dos efeitos disso nos jornais é que muitos dos mais apaixonados defensores são incapazes, mesmo hoje, de planejar para um mundo no qual a indústria que eles conheciam está visivelmente se indo.

Marc Andreessen, empreendedor em redes sociais e investidor em startup’s de tecnologia de comunicação em tempo real pela internet, numa entrevista a Charlie Rose em 19/02/09 radicalizou, e afirmou que o New York Times deveria interromper a produção do jornal impresso. Segundo Andreessen, isso provocaria uma alta nas ações da empresa, pois os investidores estão considerando as operações relativas à impressão do jornal em papel como coisa do passado. A conclusão é simples: não há mais valor nas ações relacionadas à produção da versão impressa. 

Em palestra proferida na Stony Brook University no início de Março, o Chairman do tradicional jornal americano, Arthur Sulzberger Jr., embora sem apresentar claramente um rumo a ser seguido, reconheceu a dificuldade da situação, destacando que “negócios da internet têm se revelado incapazes de reproduzir a economia do impresso. Poucas pessoas têm se demonstrado dispostas a pagar por notícias online. Os preços de anúncios para o mercado online estão relativamente baixos. E os portais de notícias na web estão pobremente organizados para tirar vantagem do modelo de anúncio contextual que domina a internet.”

Para Tim O’Reilly (CEO e fundador da O’Reilly Media, empresa editora de tecnologia que já publicou mais de 1200 títulos desde a sua fundação em 1978), as organizações de mídia deveriam levar em conta o poder do Twitter em rapidamente atingir seus consumidores alvo. “É a mais pura forma do que nós publicadores fazemos: rastreamos uma comunidade e aí prestamos atenção a algumas coisas mais que a outras, e espalhamos.” Em um certo sentido, O’Reilly sugeriu que isso é jornalismo, “cumpra-se”, pequeno. “O Twitter é o jornal mais mínimo.” Em tom de reanimação à indústria do jornal, O’Reilly lembra que as instituições podem até se assustar com a onda das mudanças, mas novas instituições acabam surgindo. 

As necessidades profundas às quais os jornais servem não estão indo embora, e certamente encontraremos novas maneiras de servir a essas demandas. Como diz Shirky, “Quando deslocamos nossa atenção de ’salvem os jornais’ para ’salvem a sociedade’, o imperativo muda de ‘preservem as instituições atuais’ para ‘façam seja lá o que funcione.’ E o que funciona hoje não é o mesmo que costumava funcionar.” O formato dessa reinvenção já pode ser visto em áreas especializadas. Em meados dos anos 1990s, Michael Leeds, CEO da CMP Media Inc., no seu primeiro dia como um dos titãs dos jornais especializados em tecnologia de computadores, disse a O’Reilly que “se ele não pudesse levar um de seus jornais a US$50 milhões em receita em 3 anos, ele o fecharia pois não valeria a pena. 

Hoje, muitos dos jornais que ele possuía já se foram, e mesmo assim pequenas firmas como Techcrunch, Mashable, e ReadWriteWeb são bem sucedidas (e fazendo um trabalho igualmente bom de cobrir as notícias da indústria de computadores) a uma ordem de magnitude a menos de receita que a CMP teria rejeitado uma certa vez.” E conclui: “o que interessa acaba sendo feito. Mas ninguém tem garantia de que seu negócio como o concebeu hoje será preservado, especialmente em qualquer escala ou rentabilidade. Portanto, tenha fé. O mundo como o conhecemos está sendo quebrado. Agora, vamos continuar reinventando-o!” Usando uma expressão de Sarah Hinchliff, a internet está nos forçando a repensar o modelo tradicional de jornal e jornalismo. Resta aproveitar para fazer surgir um novo modelo, em sintonia com o tempo real.

PS: Ruy é professor associado do Centro de Informática da UFPE e escreve para o Blog de Jamildo sempre às segundas.

Blog de Jamildo (Jornal do Commercio Online, Recife), 30/03/2009, 08:24hs,

http://jc3.uol.com.br/blogs/blogjamildo/canais/artigos/2009/03/30/jornais_e_jornalismo_na_era_do_tempo_real_43684.php


segunda-feira, 23 de março de 2009

O Sistema Nervoso Social

OPINIÃO / ARTIGO

O sistema nervoso social

POSTADO ÀS 08:55 EM 23 DE MARÇO DE 2009

Por Ruy José Guerra Barretto de Queiroz

Em recente e provocativo texto no portal Forbes.com (“The Rise of the Social Nervous System”, 09/03/09), Joshua-Michéle Ross (vice-presidente da O’Reilly Radar) levanta a possibilidade de estar sendo formado um “sistema nervoso social” no mundo virtual que comanda as ações no mundo físico. Soa quase como uma confirmação de uma observação de Arthur Clarke (escritor de ficção científica, autor de “2001 Uma Odisséia no Espaço”) num artigo apresentado num congresso internacional de astronáutica em 1961 com o título sugestivo “As conseqüências sociais dos satélites de comunicação”: “o que estamos construindo é o sistema nervoso da humanidade, que vai interligar toda a raça humana, para o bem ou para o mal, numa unidade a qual nenhuma época anterior poderia ter imaginado”.

Visão semelhante da sociedade humana como um superorganismo propôs Francis Heylighen em  "Towards a Global Brain. Integrating Individuals into the World-Wide Electronic Network", (no livro “Der Sinn der Sinne”, Uta Brandes & Claudia Neumann (Ed.), Steidl Verlag, Göttingen, 1997) ao defender que as mudanças mais importantes na sociedade moderna não se processam no âmbito dos indivíduos em si (tornando-se ou não mais semelhantes a máquinas ou robôs) mas sim no domínio “entre” indivíduos, na tecnologia, e nos padrões de comunicação e de relações sociais que conectam os indivíduos. Segundo Heylighen, à medida que esses relacionamentos tornam-se mais fortes, tende-se a uma integração das pessoas num sistema cibernético supra-indivíduo. Tal qual uma idéia que remonta aos gregos, é possível olhar para a sociedade como se ela própria fosse um organismo, consistindo de outros organismos.

E, justamente, para chegar a sua conclusão, Ross toma como ponto de partida a observação de que a internet hoje conecta a humanidade no que ele chama de “mente-colméia”: não há um recanto da vida americana moderna que não seja tocado pela tecnologia, e nenhuma tecnologia é mais transformadora que a internet. E a razão é simples: a internet é, no fundo, uma rede de comunicações, e a comunicação é o fundamento da sociedade, dos negócios, e dos governos. Devidamente posta em escala, a comunicação muda o mundo. Somos hoje pelo menos 1,6 bilhão conectados através do computador, e 3 bilhões de dispositivos móveis que tocam a internet. 

A ascensão de tecnologias “sociais” – tais como wikis, blogs, twitter, SMS, e redes sociais (Orkut, MySpace, Facebook) – significa que as barreiras à participação em todo o planeta (em termos de custo, acesso e habilidades exigidas) estão rapidamente se aproximando de zero. À medida que mais pessoas se conectam através do ciberespaço, assistimos a uma aceleração na forma como a internet é usada para coordenar ações e fornecer serviços a partir da ação humana. “Estamos testemunhando o surgimento de um sistema nervoso social”, conclui Ross. E segue adiante considerando três casos emblemáticos: a resposta à emergência verificada no caso dos ataques terroristas de Mumbai, a coordenação de ações na campanha política de Obama, e a previsão do espalhamento do vírus de gripe através de dados de busca coletados pela Google.

No primeiro caso, o uso do sistema de comunicação de tempo real que permite a combinação da internet com a telefonia celular chamado Twitter foi fundamental no desenrolar das ações em terra no caso dos ataques de Mumbai: trata-se de um ponto chave, segundo Ross, pois as trocas de mensagens no espaço virtual influenciaram diretamente o comportamento físico no mundo real, e isso caracteriza o sistema nervoso social na medida em que ele coordena (e às vezes dirige) a atividade física no mundo. Durante o ocorrido, enquanto as pessoas trocavam mensagens curtas (“tweets”, i.e., mensagens de até 140 caracteres) sobre o movimento dos terroristas, a polícia, que também se servia do sistema Twitter, pedia que as pessoas não circulassem mensagens sobre seus próprios movimentos.

No caso seguinte, a vitoriosa campanha de Obama estabeleceu marcos sem-precedentes no que diz respeito à influência da conectividade nas ações políticas do mundo real: à medida que os partidários que trabalhavam como observadores nos locais de votação constatavam que um eleitor já havia votado, entravam com o nome do eleitor no sistema de informações da equipe de campanha, e esse eleitor não mais seria procurado em vão: nada de perder tempo em contactar quem já votou.

Finalmente, até mesmo uma melhor previsão da disseminação do virus da gripe baseada na demografia das buscas por palavras-chave relacionadas à doença é hoje uma realidade: a Google descobriu que termos de busca são bons indicadores da atividade de uma doença (gripe, por exemplo), e o sistema “Google Flu Trends” usa os dados de busca agregados para estimar a ocorrência e o espalhamento geográficos da doença com até duas semanas a mais de antecedência que os métodos tradicionais de monitoramento epidemiológico.

Como diz Tim O’Reilly em um artigo sobre o texto de Ross (“The Social Nervous System Has More Than One Sense”, O’Reilly Radar, 12/03/09), todos esses exemplos seguem a narrativa “Web 2.0” (i.e., sistemas de internet com mecanismos interativos), de que, na era da rede, a competência chave é angariar inteligência coletiva. E segue lembrando que Ross vai mais além ao perceber que esses efeitos não estão limitados ao ciberespaço, mas são usados para controlar e coordenar atividades do mundo real. E essa é a nova fronteira: sair de “sensoriar” para “reagir”, de “cognição” para “coordenação” e ação em grupo.

As discordâncias de O’Reilly com Ross começam a partir do ponto em que, segundo a formulação de Ross, o conceito de sistema nervoso social estaria se referindo apenas às ações humanas e conscientes. Conforme diz Ross, não se deve confundir esse conceito com o que ocorre nas chamadas “smart energy grids” (“grades de energia inteligentes”), no controle de tráfego usando sensores ligados na web, ou mesmo no que acontece no sistema da Planetary Skin Initiative anunciado recentemente por NASA e Cisco (um casamento de satélites, sensores terrestres e a internet para capturar, analisar e interpretar dados do meio-ambiente, com o objetivo de traduzir os dados em informações que governos e corporações possam usar para mitigar e adaptar as mudanças climáticas, e gerenciar energia e os recursos naturais de forma mais eficaz). Embora útil, tais ações de otimização automatizada não poderiam ser consideradas sociais, pois o ser humano não estaria contribuindo com dados ou agindo sobre o sistema, pelo menos de forma direta e/ou consciente. 

Por sua vez, o sistema nervoso social nos faz cientes de um contexto maior de relacionamento com a humanidade, pois, além de nos permitir encontrar soluções para problemas grandes e difíceis como controlar o espalhamento de doenças ou responder a emergências, fica cada vez mais aparente que o mecanismo de realimentação em tempo real desse veículo de comunicação expõe as ações de uns poucos poderosos para os muitos. E a vida cotidiana trivial dos muitos para a humanidade inteira.  Conforme Ross, não é mera coincidência que hoje em dia "transparência" seja uma palavra-chave tanto para os governos quanto para os negócios. Trata-se de um subproduto natural desse sistema nervoso social emergente. “O sistema nervoso social engendra um equilíbrio mais saudável de poder na sociedade, e ajuda a conectar nossas ações individuais num contexto maior de uma maneira clara.”

Embora concordando que uma rede que responde ao poder da atividade humana ao mesmo tempo que o expande seja verdadeiramente poderosa, O’Reilly lembra que essa atividade não precisa ser consciente. Na realidade, muitos dos sistemas “Web 2.0” mais bem sucedidos são derivados de dados implícitos ao invés de explícitos. Ao acrescentar um link de uma página a outra, estamos contribuindo com a Google. Ao escolher em que link clicar, ou comprar um dado produto ao invés de outro, também contribuímos. Difícil é traçar uma linha divisora entre ações deste tipo e as ações às quais Ross se refere.  

Quando fazemos uma ligação telefônica, insiste O’Reilly, de uma localização ao invés de outra, não imaginamos que estamos fornecendo nossa localização, mas nosso telefone sutilmente o faz. Também, quando acendemos uma lâmpada numa casa conectada à chamada “smart grid”, podemos achar que não estamos contribuindo com nenhuma informação, mas estaremos sim, queiramos ou não. A “smart grid” tem o papel de funcionar exatamente como um desses sistemas de sensoriamento-e-resposta, conectando pessoas e máquinas numa nova espécie  de superorganismo.

Ao final, O’Reilly reconhece que a analogia de Ross é um poderoso lembrete de que a “inteligência coletiva” não é cerebral, mas, em última análise, se torna visceral, e que ela afeta não apenas o que pensamos mas o que fazemos.

Por outro lado, o surgimento do sistema nervoso social parece exigir uma mudança importante de postura quanto à privacidade do indivíduo: de “direito inalienável” para “responsabilidade individual”. Como disse Marissa Mayer (Vice Presidente de Produto de Busca e Experiência do Usuário da Google) em recente (05/03/09) entrevista a Charlie Rose, na sociedade da informação há sempre um “toma-lá-dá-cá” com respeito à privacidade: cedemos um pouco em troca de alguma funcionalidade, e portanto o que se precisa é que haja transparência sobre quais informações as empresas estão usando e qual o benefício que se tem como retorno. 

Trata-se de opinião semelhante à de Eric Schmidt (CEO da Google), também em entrevista recente (06/03/09) a Charlie Rose, que chama a atenção para a mudança social que temos que admitir estar ocorrendo no mínimo entre as gerações mais jovens: nos tornamos infinitamente mais sociais, mas infinitamente menos privados. Independentemente de geração, deixar de fazer uso da funcionalidade (busca com Google, por exemplo) não parece ser o caminho mais prático, portanto, ao que tudo indica, a tendência é que haja uma crescente pressão para que se permaneça conectado 24 horas por dia de segunda a domingo à mente-colméia. Aqueles que não se conectam, não compartilham e não colaboram terão dificuldades tanto na vida social quanto nos negócios.

O fenômeno Twitter já nos permite comprovar isso no mundo real: conforme diz Michael Arrington (“It’s Time To Start Thinking Of Twitter As A Search Engine”, TechCrunch, 05/03/09), se algo grande está acontecendo no mundo, é possível obter informação em tempo real sobre esse acontecimento na rede do Twitter. Na verdade, o Twitter também circula informações nem tão informativas assim, e acaba se parecendo mais com uma “rede de grunhidos”, porém útil como um registro online e “escrutinável” do pensamento coletivo momentâneo. E isso pode servir à coletividade. Por exemplo, boas e más experiências com produtos e serviços circulam na rede em tempo real, a tal ponto que uma busca no Twitter pode ter o efeito de uma busca no seio do pensamento coletivo naquele exato momento sobre como está sendo avaliado o produto ou serviço. 

Arrington conta que ao receber tratamento de má qualidade de uma companhia aérea ainda no aeroporto, enviou “tweets” expressando sua insatisfação, o mesmo acontecendo quando já no hotel se deu conta de que o serviço não correspondia a sua expectativa. Para as empresas, isso significa que à medida que as pessoas falam sobre as marcas dos produtos e isso atinge o ciberespaço em tempo real, essa informação pode ser usada no mínimo para tomar prontamente atitudes que venham a trazer uma maior satisfação da clientela. Para o cidadão, isso representa uma nova atitude perante uma mera expressão de insatisfação: menos privada (se assim o desejar), porém com mais força pois pode repercutir mais longe.

Parece um caminho sem volta. Mesmo os da geração dos chamados “nativos digitais”, à medida que amadurecem, não se mostram preocupados em remover aquelas fotos indiscretas disponibilizadas na internet. O fato concreto é que, queiram ou não queiram os mais velhos, a noção de expectativa razoável de privacidade está mudando à medida em que nossas vidas estão sendo registradas no espaço cibernético. Parece que esse é o preço que devemos pagar para uma maior integração: como diz Ross, é preciso reformatar nossas identidades como parte de um todo maior interconectado.

PS: Ruy é  professor associado do Centro de Informática da UFPE e escreve para o Blog de Jamildo sempre às segundas.

Blog de Jamildo (Jornal do Commercio Online, Recife), 23/03/2009, 08:55hs, http://jc3.uol.com.br/blogs/blogjamildo/canais/artigos/2009/03/23/o_sistema_nervoso_social_43259.php


segunda-feira, 16 de março de 2009

Valores Morais no Ciberespaço e a Convivência Online

OPINIÃO / ARTIGOS

Valores morais no ciberespaço e a convivência online

POSTADO ÀS 09:12 EM 16 DE MARÇO DE 2009

Por Ruy José Guerra Barretto de Queiroz

Conforme um relatório recente da Nielsen Online (um serviço da Nielsen Company, empresa de informação e mídia global com liderança de mercado em marketing e informação ao consumidor, medição para a televisão e outras mídias, inteligência online, medição para comunicação móvel, convenções comerciais e publicações de negócios), as redes sociais (Facebook, Orkut, MySpace) se constituíram no grande fenômeno de consumo global de 2008. Dois terços da população da internet visitam uma rede social ou um blog, e o setor agora representa quase 10% de todo o tempo da internet. 

As “Comunidades baseadas em Membros Inscritos” ultrapassaram E-mail para se tornar o quarto setor mais popular online depois de busca, portais e aplicações de software de computador pessoal. Tudo isso é consistente em todo o mundo, e as Comunidades fincaram de vez um pé nos maiores mercados online, desde 50% da população online na Suíca e Alemanha até 80% no Brasil. A Facebook, por exemplo, se tornou o maior ator no cenário global, assumindo uma posição dominante em muitos países. Entretanto, o crescimento da popularidade das redes sociais – e a audiência crescente resultante desse processo – é apenas metade da estória. 

O enorme aumento no tempo que as pessoas estão dedicando a esses portais está mudando a forma pela qual essas pessoas passam o tempo online, e tem ramificações no modo como se comportam, compartilham e interagem nas suas vidas cotidianas normais. As redes sociais online começaram com a audiência dos mais jovens, porém, à medida que se tornam mais populares, não chega a ser surpresa ver sua audiência se tornando mais ampla e mais madura. Essa mudança tem sido impulsionada sobretudo pela Facebook (que começou em 2003 como um serviço aos calouros de Harvard:  conhecer um álbum de fotos e dados dos veteranos), cuja fórmula bem sucedida abriu de fato um mundo de possibilidades de convivência através dessas redes a uma audiência bem mais ampla.

O fato concreto é que a convivência através da internet já é uma realidade para a grande maioria de menores e adolescentes americanos (alguns estimam mais de 90%), e mesmo assim poucos estudos científicos foram realizados sobre a influência do desenvolvimento moral, do raciocínio, e da tomada de decisões no comportamento nesse espaço “virtual” de socialização. Considera-se até certo ponto surpreendente essa carência de pesquisas sobre o assunto, tendo em vista as fortes evidências de que crianças e adolescentes, especialmente no mundo ocidental, passam boa parte de seu cotidiano no mundo virtual (vide Pew Internet & American Life Project 2006), onde são muitas as oportunidades de se engajar em comportamento “questionável”. (Por exemplo, conforme matéria recente no portal da Reuters, mais da metade dos adolescentes americanos mencionam comportamentos arriscados tais como sexo e drogas em suas contas na rede social MySpace.) 

A anonimidade da internet, sua disponibilidade 24 horas por dia de segunda a domingo, e a enorme gama de informações e atividades “inapropriadas” online obviamente levantam questões morais diretamente relevantes aos menores usuários da internet. Por exemplo, há evidências documentadas de que menores vêem pornografia online (a chamada “ciberpornografia”), baixam arquivos ilegalmente (i.e., música, filme, ou livro protegido por direitos autorais), importunam amigos e conhecidos (há um termo em inglês que parece estar sendo absorvido na língua portuguesa: “cyberbullying”), interagem de formas “íntimas” com estranhos, e praticam o plágio “roubando” informações e fazendo de conta que é deles.

Considerado pela crítica como bem-vindo e oportuno, o artigo intitulado “Gender, Race and Morality in the Virtual World and Its Relationship to Morality in the Real World”, publicado em Fevereiro último na revista científica Sex Roles, relatando um estudo liderado por Linda Jackson, professora de psicologia da Michigan State University, busca descobrir se os valores morais da vida real se transferem para o mundo virtual. Conforme os próprios autores, trata-se da primeira investigação sistemática dos efeitos de gênero e raça sobre a moralidade de menores no mundo virtual, e até que ponto isso está relacionado com a moralidade desses menores no mundo real. O estudo se concentra fundamentalmente em três questões. 

Primeiro, há diferenças de gênero e/ou raça na aceitabilidade de comportamentos moralmente questionáveis no mundo virtual? Em segundo lugar, o comportamento moral e as atitudes morais no mundo real servem como elementos para se prever a aceitabilidade de comportamentos moralmente questionáveis no mundo virtual? Finalmente, será que a freqüência de uso da tecnologia (computador, internet, video game, celular) determinam a aceitabilidade de comportamentos moralmente questionáveis no mundo virtual?

A pesquisa se baseia nas respostas de 515 estudantes do sétimo ano (12 a 13 anos de idade) a perguntas sobre aceitabilidade de ações “virtuais”. Essas ações incluem espalhar vírus de computador, enviar por e-mail a amigos as respostas a questões de exames escolares, ver pornografia, e enviar mensagens sexualmente explícitas a estranhos. A pesquisa compara esses resultados a perguntas sobre o comportamento no mundo real como colar (ou “filar”) nos exames escolares, abusar ou importunar colegas (em inglês “bullying”), mentir para os pais ou professores, e usar expressões racistas.

Os autores chamam a atenção para o fato de que o que mais se aproxima de uma consideração do comportamento moral no mundo virtual é a chamada política do “uso aceitável”. Provedores de serviços de internet, assim como instituições públicas e privadas que provêem acesso à internet (como, por exemplo, escolas) normalmente exigem que os usuários assinem um termo de compromisso concordando em evitar comportamentos virtuais inaceitáveis. Entretanto, não fica claro se os menores enxergam a adesão a tais termos como um “imperativo moral”. Igualmente, não está claro se a moralidade desenvolvida no mundo “real” influencia as crenças sobre o que constitui comportamentos imorais ou inaceitáveis no mundo virtual. Surge a questão: existem dois mundos diferentes quando se trata de moralidade?

Embora os resultados da pesquisa indiquem que a moralidade no mundo real dá uma idéia de como crianças vêem comportamento online questionável, o relacionamento se mostrou fraco, conforme a professora Linda Jackson. Isso sugere que outros fatores influenciam a moralidade online, e que “há uma disparidade entre a forma como crianças pensam sobre moralidade ou virtude no mundo virtual e no mundo real, e que portanto há algo mais.” O que é esse algo mais, ainda não está claro. É preciso entender melhor o processo de conceitualização desse novo mundo virtual, e se os menores de fato o pensam como separado. 

Não é difícil imaginar como uma criança desenvolveria essa percepção, pois em 90% das vezes, eles sabem mais sobre esse mundo virtual que seus próprios pais. Isso pode inclusive passar uma sensação do tipo “talvez meus pais saibam muito sobre o mundo real, mas quando estou online, é meu mundo”. Como agravante, para os menores que têm seus próprios computadores, a percepção tende a ser de que sua privacidade está garantida e que é possível fazer tudo no mundo virtual sem correr o risco de ser apanhado.

Como conclusão e recomendação final, os autores afirmam que intervenções educacionais que sejam culturalmente sensíveis precisam ser desenvolvidas para assegurar que todos os menores, independente de raça ou gênero, entendam que certos comportamentos virtuais são inaceitáveis, e que, na verdade, podem vir a ser psicologicamente prejudiciais, como a violência excessiva em vídeo games, ou fisicamente perigosos, como contactar estranhos online.

A busca pelo conhecimento científico apropriado para o enfrentamento dessas questões faz parte de um projeto mais amplo de criação, no âmbito da UFPE, de um Centro de Estudos de Internet e Sociedade à luz de exemplos bem sucedidos como Harvard e Stanford. 

O objetivo é explorar e entender o ciberespaço; estudar seu desenvolvimento e dinâmica, suas normas e padrões; e avaliar a necessidade ou a falta de leis e sanções para esse novo espaço de convivência. Agindo como um forum interdisciplinar, o Centro deverá buscar reunir estudiosos, acadêmicos, legisladores, estudantes, programadores, pesquisadores em segurança da informação, e cientistas para estudar a interação entre as novas tecnologias e as ciências sociais (Direito, Economia, Sociologia, Psicologia, Pedagogia) e examinar como a sinergia entre essas disciplinas pode promover ou prejudicar bens públicos como a liberdade de expressão, a privacidade do indivíduo, os comuns públicos, a diversidade, e a investigação científica. 

A intenção é fomentar ações que melhorem tanto a tecnologia quanto as leis e as regras de convivência social, encorajando os tomadores de decisões a projetar tanto as leis como as tecnologias como veículos do aprimoramento dos valores democráticos. 

PS: Ruy é professor associado do Centro de Informática da UFPE e escreve para o Blog sempre às segundas.

Blog de Jamildo (Jornal do Commercio Online, Recife), 16/03/2009, 09:12hs, http://jc3.uol.com.br/blogs/blogjamildo/canais/artigos/2009/03/16/valores_morais_no_ciberespaco_e_a_convivencia_online_42800.php


segunda-feira, 9 de março de 2009

Código e Poder na Sociedade da Informação

OPINIÃO / ARTIGO

Código e poder na sociedade da informação

POSTADO ÀS 09:33 EM 09 DE MARÇO DE 2009

Por Ruy José Guerra Barretto de Queiroz

(Dedicado ao Dia Internacional da Mulher, 08 de Março)

Num artigo recente (“Women & The Rise of Code: Is Power a Moving Target”, 15/02/09) em seu blog no Center for Internet and Society (Stanford), Ryan Calo reexamina a questão sobre o balanço do poder estar sempre sendo determinado pelos códigos de lei. E lembra que quase todo juiz nos EUA freqüentou a faculdade de direito, assim como a maioria dos legisladores, muitos líderes industriais e de organizações sem fins lucrativos, e até mesmo 26 dos últimos 44 presidentes americanos. Não deve causar surpresa, afirma Calo, que muito dos estudos feministas se concentre na atual subrepresentação das mulheres na profissão do Direito, particularmente nos seus escalões mais altos. 

A Faculdade de Direito da Universidade de Yale, considerada pela revista U.S. News & World Report como a melhor faculdade de direito dos EUA, superando inclusive Harvard, começou formalmente a admitir mulheres em 1918, e hoje, 90 anos depois, apenas 17,3% dos parceiros de empresas de advocacia nos Estados Unidos são do sexo feminino.  Dezoito dos 100 senadores americanos são mulheres, e a bancada federal da câmara dos representantes permanence 80% masculina. Muitos estudiosos de peso buscam demonstrar que esse estado de penúria: (i) resulta de discriminação sistêmica e corrente; (ii) significa que as mulheres têm menos influência no fazer, no aplicar, e no interpretar a lei e as políticas públicas; e (iii) no final das contas se traduz em lei que (sutilmente) discrimina contra a mulher ou promove valores essencialmente masculinos.

Muito embora muitos avanços têm sido obtidos no que concerne a uma melhor participação da mulher na sociedade americana (eventos de 2008: pela primeira vez uma mulher americana é promovida a general de quatro-estrelas, e a quase-indicação de uma mulher para disputar a presidência), Calo alerta que é preciso não esquecer de observar os movimentos do poder. A cada dia fica menos óbvio que a lei permanecerá como repositório primário do poder. 

Já no final da década de 1990, Lawrence Lessig, motivado pela visão comum de dois escritores de ficção científica sobre o futuro do espaço de comunicações à distância (ciberespaço), apresentada em 1996 numa conferência sobre “Computadores, Liberdade e Privacidade”, de que “policiamento ubíquo” possibilitado por “sistemas distribuídos granulados,” nos quais a tecnologia que moldaria nosso futuro modus vivendi também alimentaria dados para, e aceitaria comandos do governo, apresentou um argumento contra a crença então predominante de que o ciberespaço (ou espaço virtual) estava além do alcance da regulação do espaço real e que os governos não teriam ingerência sobre a vida online, e portanto esta última seria diferente, e separada da dinâmica da vida offline. 

(Os dois escritores foram: Vernor Vinge, autor de Rainbow’s End (Tor Books, 2006), mais conhecido por seu ensaio de 1993 "The Coming Technological Singularity" no qual argumenta que o crescimento exponencial em tecnologia atingirá um ponto além do qual não conseguiremos sequer especular sobre as conseqüências, e Tom Maddox, um dos pioneiros do movimento chamado “cyberpunk”, e inventor do termo “Intrusion Countermeasures Electronics” (ICE) usado na literatura cyberpunk para se referir a programas de segurança que protegem dados computadorizados do acesso por hackers). 

A arquitetura que possibilitaria isso já estava sendo montada—era a internet. À medida que essa rede que permitiria tal controle se tornasse mais integrada em cada aspecto da vida social, seria apenas uma questão de tempo, segundo dizia Vinge, até que os governos tomassem o controle sobre partes vitais desse sistema. Também, à medida que o sistema amadurecesse, cada nova geração do código do sistema aumentaria o poder do governo. 

Nossas vidas digitais – e, cada vez mais, nossas vidas físicas – seriam vividas num mundo de regulação perfeita, e a arquitetura dessa computação distribuída – o que hoje chamamos de internet – tornaria a perfeição regulatória possível. Na visão de Maddox o poder do governo não viria apenas dos chips, mas seria reforçado por uma aliança entre governo e comércio. (Curiosamente, hoje vivemos um clima de alta tensão entre as indústrias fonográfica e cinematográfica e o usuário da rede que deseja compartilhar arquivos. A Recording Industry Association of America (RIAA) já processou mais de 30.000 consumidores, entre eles muitos adolescentes, acusando-os de compartilhar arquivos protegidos por direitos autorais.)

Em Code 2.0 (Basic Books, 2006) Lessig define “regulabilidade” (por lei) como sendo a capacidade de um governo regular o comportamento dentro de seu alcance apropriado. No contexto da internet, isso representa a capacidade do governo de regular o comportamento de (pelo menos) seus cidadãos enquanto estejam na rede. Para regular bem, é preciso saber (1) quem alguém é, (2) onde ele(a) está, e (3) o que ele(a) está fazendo. Mas devido à forma pela qual a internet foi originalmente desenhada, não há uma maneira simpes de se saber nem (1), nem (2), e muito menos (3). 

Portanto, à medida que a vida se mudou para essa versão da internet, a regulabilidade dessa vida diminuiu. A arquitetura do espaço – pelo menos como ele era – tornou a vida nesse espaço menos regulável. Porém, eis que surge a “regulabilidade por código”: existe regulação de comportamento na internet, mas essa regulação é imposta principalmente através do código “executável” (i.e., software). As diferenças nas regulações efetuadas através desse tipo de código distinguem diferentes partes da internet. Em alguns lugares, a vida é razoavelmente livre; em outros lugares, é mais controlada. E a diferença entre esses espaços é simplesmente uma diferença na arquitetura de controle – ou seja, uma diferença no código.

Mais adiante Lessig argumenta que não é da natureza do ciberespaço ser não-regulável; o ciberespaço não tem "natureza." Simplesmente tem código – o software e o hardware que faz do ciberespaço o que ele é. Esse código pode criar um espaço de liberdade – como o fez a arquitetura original da internet – ou um lugar de controle opressor. Sob a influência do comércio, o ciberespaço está se tornando um espaço altamente regulável, onde o comportamento é muito mais rigidamente controlado do que no espaço real. 

Segundo o Editorial Review, isso também não é inevitável. Podemos – devemos – escolher que tipo de ciberespaço desejamos e que liberdades serão asseguradas. E essas escolhas são todas sobre arquitetura: que tipo de código governará o ciberespaço, e quem o controlará. Nesse universo, o código é a forma mais significativa de lei, e está na mão dos responsáveis por políticas públicas, e especialmente os cidadãos, a decisão sobre que valores esse código deve encorpar. 

Numa resenha no portal Amazon.com, Olly Buxton entende que a conclusão de Lessig é a de que é preciso rejeitar completamente a postura utópica e ingênua comum nos cidadãos da internet, de que os controles legais tradicionais estão mortos e que a chamada “Web 2.0” nos garante um eterno estado de contentamento. É importante estar ciente de que, bem ao contrário, a Web 2.0 é “arquitetada” para permitir regulação máxima concebível, e que as atividades online são suscetíveis a uma regulação total que, offline, nunca seria factível. 

Tudo isso deve servir como uma lembrança de como devemos permanecer de olhos abertos para a enorme importância do “código” e outras facetas da tecnologia da informação na moldagem das possibilidades humanas. Até no quesito dominância no cenário mundial, esse é um fator crucial. Em suas previsões sobre a influência dos Estados Unidos no contexto global, George Friedman, cientista político americano, autor de vários livros (America’s Secret War, The Intelligence Edge, The Future of War) e especialista em sistemas de defesa e inteligência, menciona o fato de que as economias mundiais baseadas na língua inglesa terão uma grande vantagem pois a maioria dos códigos de programação estão principalmente em inglês.  

Outro influente especialista mundial em políticas de tecnologia e lei, Joel Reidenberg (professor da Faculdade de Direito da Fordham University) diz que lei e regulação governamental não são as únicas fontes de estabelecimento de regras para o comércio internacional. As capacidades tecnológicas e as escolhas no desenho do sistema impõem regras aos participantes. A criação e a implementação de políticas de informação estão embutidas em desenhos e padrões de rede assim como em configurações de sistemas. 

Até mesmo as preferências dos usuários e as escolhas técnicas criam regras locais superabrangentes. Por sua vez, Danielle Citron, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Maryland, especialista em Tecnologia e Políticas Públicas, computadores hoje em dia encerram os benefícios do Medicaid (sistema americano de baixa renda), removem eleitores de listas de votação, impedem passageiros de voar em linhas aéreas comerciais, rotulam (muitas vezes erroneamente) indivíduos como pais que fogem à responsabilidade pelo sustento dos filhos, e marcam pessoas como possíveis terroristas a partir de suas mensagens eletrônicas ou registros telefônicos. 

Ao mesmo tempo, a automatização prejudice a elaboração participativa de regras e políticas coletivas. Programadores, segundo Citron, rotineiramente alteram as políticas quando as traduzem da língua natural para código em linguagem de programação. Quando o sistema não é de código aberto isso ainda é mais grave, pois impede que indivíduos e até mesmo tribunais avaliem até que ponto o código diverge das regras estabelecidas. Nesses casos, aos programadores está sendo delegada a escolha não-escrutinada de formulação de políticas. 

Conforme conclui Calo, se Lessig, Friedman, Joel Reidenberg, Danielle Citron, e tantos outros estiverem certos, o cerne do poder pode estar se deslocando: pode estar saindo das mãos dos profissionais da lei, e caindo nas mãos daqueles que criam, programam e mantêm as tecnologias da informação que invadiram nossas vidas. 

Resta-nos permanecer vigilantes e cientes de que as decisões que tomamos quando assentamos os fundamentos do novo mundo terão um impacto sobre a estrutura da sociedade humana que transcende aquele de qualquer desenvolvimento tecnológico anterior.  Se, ao desenharmos esse novo mundo, não levarmos em conta a liberdade de expressão, a privacidade e a segurança de uma maneira que reflita a primazia do indivíduo, nossa tecnologia irá impor uma ordem social na qual o indivíduo é subordinado às instituições cujos interesses foram prioritários no desenho.

PS: Ruy é professor associado do Centro de Informática da UFPE e escreve para o Blog de Jamildo sempre às segundas.

Blog de Jamildo, Jornal do Commercio (Recife), 09/03/09, 09:33hs, http://jc3.uol.com.br/blogs/blogjamildo/canais/artigos/2009/03/09/codigo_e_poder_na_sociedade_da_informacao_42365.php


segunda-feira, 2 de março de 2009

Abertura e transparência, com proteção à privacidade

OPINIÃO / ARTIGO

Abertura e transparência, com proteção à privacidade

POSTADO ÀS 08:25 EM 02 DE MARÇO DE 2009

Por Ruy J.G.B. de Queiroz

Como diz John Schwartz numa matéria recente no New York Times (“An Effort to Upgrade a Court Archive System to Free and Easy “, 12/02/09), estamos nos acostumando a encontrar praticamente tudo na internet, de forma rápida, e de graça. Mas quando se trata de decisões judiciais, não se tem Google. Mesmo nos EUA, o acesso a decisões das cortes federais e processos judiciais tem que ser feito através de um sistema antiquado, não-gratuito, e mantido pelo governo, chamado PACER (“Public-Access to Court Electronic Records”).

Recentemente, um grupo de ativistas pela transparência e por um “governo aberto”, liderados por Carl Malamud (tecnologista, autor de diversos livros, e defensor do domínio público, mais conhecido atualmente como fundador da organização civil sem fins lucrativos “Public Resource” - public.resource.org) se juntaram para tentar modernizar o sistema de registros judiciais levando ao domínio público partes da base de dados do PACER às quais tiveram acesso.

Malamud diz que o sistema está tecnologicamente atrasado de 15 a 20 anos. O porta-voz das cortes americanas, Richard Carelli, discorda e diz que o PACER é o maior avanço tecnológico no sistema dos tribunais nos últimos 20 anos. O sistema de busca já revolucionou o acesso aos registros judiciais, argumenta Carelli, evitando as idas e vindas aos fóruns e tribunais e eliminando os custos com fotocópia. Além disso, o PACER já provê aos seus 900.000 usuários acesso gratuito a opiniões judiciais, e o cidadão não precisa pagar se o total de suas consultas no ano não chegar a US$10.

Na verdade, Malamud não espera e faz acontecer: usando US$600 mil em contribuições em 2008 para adquirir registros, contactando advogados e solicitando que doem seus documentos retirados do PACER, e aí então classificando, compactando e disponibilizando gratuitamente no portal da Public Resource, o trabalho de um ano já permitiu que o acervo conte com 20% do PACER, incluindo todas as decisões de cortes de apelação federais dos últimos 50 anos. O projeto é importante, segundo ele, porque os registros dos tribunais são parte do tecido de uma democracia, e por isso deveriam estar disponíveis gratuitamente a todos os cidadãos.

O fato é que o PACER reúne informações que muitos acreditam deveriam estar disponíveis sem custo ao cidadão — documentos produzidos pelo governo americano não podem ser protegidos por direitos autorais, conforme determinou a Suprema Corte — e, mesmo assim, é cobrada uma taxa de 8 centavos por página, que em 2006 gerou um lucro de US$ 50 milhões ao poder judiciário federal americano. A maioria dos serviços privados que facilitam a busca, como Westlaw e Lexis-Nexis, cobram muito mais caro, enquanto que novos serviços como AltLaw.org, Fastcase.com, e Justia.com, oferecem alguns registros por um preço mais barato, ou até mesmo de graça.

Mas mesmo com o custo aparentemente menor do PACER, acaba saindo caro quando um processo é volumoso. A arrecadação com as taxas retorna aos tribunais para financiar tecnologia, mas mesmo assim o sistema tem uma sobra de cerca de US$150 milhões, conforme relatórios recentes.

Para Malamud, impedir ou dificultar o acesso gratuito e universal ao sistema legal de um país acaba separando o povo do que ele chama de “o sistema operacional da democracia” (leis, códigos e casos jurídicos), e que o sistema só funciona se todos tiverem acesso irrestrito às fontes primárias. A visão unificadora dos que desafiam o estado atual do acesso a essas informações aponta para um portal no estilo Wikipedia que possa disponibilizar as informações e permitir a busca e o comentário, de forma aberta, universal e gratuita. Surgirá daí naturalmente um sistema público de anotação das leis por estudiosos do Direito assim como blogueiros, tudo isso em nome de um acesso mais rico do cidadão às leis de seu país.

Até o final de 2008, Malamud já se considerava pronto para encarar as bases de dados maiores das cortes distritais que, com a ajuda do Government Printing Office (GPO) tinham organizado em 2007 uma promoção de acesso livre ao PACER em 17 bibliotecas. (O GPO é uma agência do poder legislativo do governo americano que publica e provê acesso a documentos produzidos para e pelos três poderes do governo federal, incluindo a Suprema Corte, o Congresso, o Gabinete Executivo do Presidente, os departamentos executivos, e as agências independentes.) Ao tomar ciência disso, esse “gadfly” da internet (termo em inglês que significa “cri-cri”: alguém insistente, intrometido, que incomoda) convocou os colegas ativistas a visitar tais bibliotecas, baixar a maior quantidade possível de documentos, e enviá-los para republicação na web, onde seriam alcançados pela indexação do Google.

Alguns ativistas tomaram por capricho atender ao chamado de Malamud (“A lei contém as regras que governam nossa sociedade. Só queremos ser capazes de ler nosso próprio manual do usuário”), como por exemplo, Aaron Swartz, um ex-aluno de Stanford, hoje empreendedor, conseguiu baixar o que se estima representar 20% da base de dados: 780 giga bytes de dados, contendo 19.856.160 páginas de texto. Mas aí, no final de Setembro passado, todos os servidores com acesso livre ao PACER pararam de servir. Veio uma nota do GPO informando que o serviço piloto do PACER havia sido suspenso, e que seria reavaliado. Duas semanas depois, um funcionário do GPO avisou aos bibliotecários que “a segurança do serviço PACER foi comprometida”, e que o FBI estava investigando.

Determinado a lutar pela abertura e transparência dos registros judiciais e documentos governamentais, Malamud recentemente se lançou numa campanha para assumir o posto de “Public Printer” (i.e., diretor do GPO), usando o slogan “Yes we scan” (“Sim, digitalizamos”) parafraseado do mote “Yes we can” (“Sim, podemos”) utilizado na campanha de Obama. Sem cerimônia, e inspirado em Gus Geigengack, que mesmo vindo de fora dos círculos do poder, e não tendo qualquer proximidade com Franklin Roosevelt, convenceu o então presidente a nomeá-lo Public Printer enviando à Casa Branca uma moção de apoio de 200 cartas, vem a público se oferecer, e já conta com inúmeros endossos, incluindo alguns nomes de peso (Lawrence Lessig, Tim O’Reilly, Tim Wu, Pamela Samuelson, Tim Stanley).

Norteando sua campanha está a convicção de que publicação é uma via de mão dupla, e que por isso é preciso investir na melhoria da usabilidade e da capacidade de navegação do portal que hospeda o Federal Register (o Diário Oficial americano) assim como a própria apresentação visual desse veículo oficial.

Assim, o Federal Register 2.0 (numa referência à perspectiva interativa, em analogia à chamada Web 2.0) precisa prover acesso em 3 níveis: (i) no nível mais baixo, massas de dados no formato SGML (“Standard General Markup Language”, uma metalinguagem através da qual se pode definir linguagens de marcação para documentos), assim como versões em PDF e HTML devem estar disponíveis sem custo (o preço atual de US$17 mil tem um efeito negativo sobre a inovação e não é apropriado para publicações do governo); (ii) uma API (“application programming interface”, i.e. um conjunto de rotinas e padrões estabelecidos por um software para a utilização das suas funcionalidades por programas aplicativos) deveria permitir a qualquer blogueiro embutir um documento, uma parte de um documento, ou um fluxo de documentos no seu próprio portal, tal qual se pode fazer com um clip ou lista de clips do YouTube; (iii) a mesma API que desenvolvedores externos usam podem então ser usadas pelo governo para montar um portal melhor, o Federal Register 2.0. No final das contas, a intenção é promover uma “reinicialização” na comunicação do governo com o cidadão (o termo técnico em inglês “reboot” é usado em referência à uma reinicialização tecnológica, como a reinicialização do sistema operacional de um computador) que levaria a uma transformação radical em 4 anos: (1) digitalizar completamente todas as informações governamentais, incluindo a Library of Congress e os National Archives; (2) mudar a interação entre o governo e o cidadão de um fluxo de mão única para um fluxo de mão dupla, oferecendo a chance, por exemplo, de que um cidadão seja capaz de participar de procedimentos públicos, ajudando a sugerir mudanças à legislação ou perguntas a testemunhas depondo perante o Congresso; (3) reinicializar o domínio “.gov” e torná-lo uma das 10 maiores destinações na internet.

Não obstante sua obsessão com abertura e transparência da informação, Malamud tem uma longa história de tentar equilibrar abertura com proteção à privacidade, e nesse ponto a questão se torna bem espinhosa quando se trata de documentos judiciais que podem conter informações pessoais. Alguns estudiosos, como Daniel J. Solove, professor da Faculdade de Direito da George Washington University, temem que empresas de propaganda consultem registros judiciais à procura por dados pessoais, e que ao facilitar o acesso a esses registros estaríamos colocando mais dados sob risco de violação indevida.

Alguns mais cuidadosos, como Peter Winn, um especialista em privacidade que exerce a função de procurador-assistente no estado de Washington, argumentam que os tribunais desenvolveram regras durante os últimos 400 anos para proteger a privacidade, e que isso não pode ser desperdiçado: se funcionou na era da pedra-e-cal, deve funcionar também na era eletrônica. Malamud, por sua parte, diz que está de pleno acordo que o sistema judiciário precisa fazer melhor no que diz respeito à proteção da privacidade. Após encontrar milhares de documentos nos quais os advogados e os tribunais não tinham protegido apropriadamente as informações pessoais como números de seguridade social (“social security number”), uma franca violação das regras dos próprios tribunais, Malamud decidiu enviar cartas aos assistentes judiciários de cada uma das cortes americanas.

Sem receber resposta, e somente depois de repetidas e mais enérgicas solicitações, observou que a maior parte dos documentos problemáticos haviam sido retirados da base de dados para o devido reparo. Por incrível que pareça, havia dados sobre crianças em Washington, nomes de agentes do Serviço Secreto, nomes de membros de fundos de pensão, e muito mais. Em um certo momento, a equipe do portal Public Resource usou algumas ferramentas de software primitivas para fazer busca por números de seguridade social em registros judiciais de 32 cortes distritais, e os resultados foram preocupantes: 1.700 documentos confirmados, incluindo um de uma corte de Massachusetts que continha uma lista de 54 páginas dos nomes, problemas de saúde, números de seguridade social e datas de nascimento de 353 pacientes.

Malamud diz que tem sido contactado por pessoas chocadas em descobrir um antigo processo no qual foram citadas de repente aparecendo em resultados de busca com seus nomes. Segundo ele, grupos de interesse público e o público em geral, quando dispõem do acesso a esses registros públicos, são capazes de fornecer o tipo de realimentação que leva à correção dessas questões em torno da privacidade. Portanto, se desejamos tratar com seriedade a proteção à privacidade pessoal, somente podemos fazê-lo se também tratarmos com seriedade o acesso público à informação.

Sem dúvida, abertura e transparência não são incompatíveis com a proteção à privacidade. Equilíbrio é a palavra de ordem.

PS: Ruy é professor associado do Centro de Informática da UFPE e escreve para o Blog sempre às segundas.

Blog de Jamildo (Jornal do Commercio, Recife), 02/03/2009, 08:25hs,

http://jc3.uol.com.br/blogs/blogjamildo/canais/artigos/2009/03/02/abertura_e_transparencia_com_protecao_a_privacidade_41876.php