Páginas

sábado, 28 de dezembro de 2013

Tecnologias Digitais e o Jornalismo Investigativo

Tecnologias Digitais e o Jornalismo Investigativo

SÁB, 28 DE DEZEMBRO DE 2013 17:48

Segundo a UNESCO, jornalismo investigativo é a especialidade do jornalismo que busca a revelação de matérias que são ocultadas deliberadamente por alguém em uma posição de poder, ou acidentalmente, por trás de uma massa caótica de fatos e circunstâncias – e a análise e exposição de todos os fatos relevantes para o público. Dessa forma, o jornalismo investigativo contribui de forma crucial para a liberdade de expressão e para o desenvolvimento da mídia.

Jornalistas investigativos buscam descobrir fatos e produzir reportagens que venham a expor desperdícios, irregularidades, má gestão, fraudes, conflitos de interesses e abusos de autoridade. Um dever fundamental do jornalista, e mais particularmente do jornalista investigativo, é o de servir ao interesse público, agindo como um cão de guarda de órgãos do governo, de negócios, de educação, de saúde, de meio ambiente, de segurança e outras instituições. Por essa razão se diz que o jornalismo investigativo é indispensável para a democracia, na medida em que ele tem o papel de propiciar ao público o conhecimento e os fatos a respeito do modo como as instituições importantes em nossa sociedade operam, permitindo assim que os cidadãos possam estar plenamente informados.

Com as grandes e recentes transformações nas tecnologias da informação e da comunicação, haveria uma crise na indústria da mídia que estaria ameaçando a sobrevivência do jornalistmo investigativo?

Em palestra proferida em Abril de 2012 sobre “Investigative Journalism in the Digital Age”, Iain Overton, fundador e editor da ONG “Bureau of Investigative Journalism”, argumenta que, apesar da grande discussão no contexto global, a "crise" no jornalismo investigativo, supostamente devida ao impacto da mídia digital, num certo sentido diz respeito a apenas uma parte de uma crise maior no jornalismo tradicional como um todo.

A proliferação de novos meios de comunicação baseados na Internet na forma de blogs, jornais online, redes sociais, etc., e a facilidade de reprodução de conteúdo resultou numa queda acentuada e persistente na receita (de vendas e anúncios) de grandes e tradicionais jornais em todo o mundo. Essa queda aparece refletida num declínio que vem ocorrendo há algum tempo nas vendas de jornais com apenas uma pequena porcentagem de material original, mesmo em veículos mais tradicionais, o que implica muito menos dinheiro e investimento para o jornalismo investigativo. A percepção predominante é a de que esta última é sempre uma atividade cara, dada a sua intensidade de trabalho e o grande número inevitável de “becos sem saída”. Como se não bastasse, os custos dessa atividade para os jornais tradicionais têm consistentemente aumentado, sem falar no custo do risco de processo por difamação, por exemplo.

Por outro lado, é nítida a disrupção na indústria da mídia provocada por diversas inovações em tecnologias da informação e de comunicação, muitas delas causando uma redução drástica nos custos associados ao jornalismo investigativo. Por exemplo, o jornalista investigativo dos dias de hoje pode ser dono de suas próprias produções e não depende tão fortemente de uma grande equipe de suporte técnico, pois são muitas as oportunidades “multi-plataforma” para divulgar mais ampla e seguramente suas estórias de interesse público, com o benefício adicional de poder receber o feedback imediato do seu leitor. Além disso, são muitas as ferramentas digitais abertas e de código aberto que servem para acelerar certos tipos de investigação, tais como “web-scraping” e software para encontrar links na “nuvem de documentos”. O próprio portal da Wikileaks veio para mudar definitiva e radicalmente a atividade de “whistleblowing”, e, consequentemente, de proteção às fontes, fundamental para o sucesso de uma investigação.

Em debate sobre “Can investigative journalism survive?” realizado em 22/10/2013 no London Press Club, em parceria com a ONG YouGov, algumas das principais figuras do jornalismo britânico, entre eles Alan Rusbridger, editor-in-chief do The Guardian, Andrew Gilligan, premiado jornalista investigativo (“Jornalista do Ano” em 2008) e editor do The Daily Telegraph, e Heather Brooke, destaque do jornalismo cidadão e responsável pela revelação de um grande escândalo recente envolvendo gastos excessivos de parlamentares britânicos, chegam à conclusão quase unânime que, apesar de diversos fatores contrários, o jornalismo investigativo sobreviverá. Organizado imediatamente após a divulgação dos resultados de um levantamento com um universo de 1019 cidadãos britânicos e 788 formadores de opinião de 20/09 a 07/10/2013 sobre o impacto do jornalismo investigativo na sociedade britânica, o debate ocorreu sob a constatação de que apenas 49% dos entrevistados concorda que ‘o público ainda está verdadeiramente interessado no jornalismo investigativo’, embora entre os formadores de opinião esse percentual tenha atingido 71%. A pesquisa revelou também que o público concorda que o declínio do investimento e da qualidade jornalística, o ciclo de notícias 24h, e o foco editorial no curto prazo, têm exercido um impacto negativo.

Com a autoridade de quem é editor- chefe de uma organização jornalística com um histórico recente invejável em termos de serviços prestados ao público como o The Guardian (vide Wikileaks e Assange, NSA e Snowden), Alan Rusbridger demonstra otimismo quanto à sobrevivência do jornalismo investigativo, mesmo em face de inúmeros obstáculos, entre eles o financeiro e o legal. (Vale lembrar que alguns dos grandes baluartes do jornalismo do Reino Unido têm sido enfáticos em demonstrar receio quanto à crescente ameaça de legislação cedendo maior controle da mídia ao governo.) Entre esses formidáveis obstáculos, Rusbridger chama a atenção para o surgimento de um novo competidor representado por organizações e/ou grupos de indivíduos que, com o apoio de novas tecnologias, aparecem como defensores do cidadão comum e da transparência contra governos, corporações e regimes opressores e autoritários: trata-se do que está sendo chamado de “O Quinto Poder”, que tem como representantes mais ilustres as figuras de Julian Assange, os Cypherpunks, Edward Snowden, e Glenn Greenwald.

Em sua intervenção no debate, Andrew Gilligan argumenta que o aspecto financeiro de uma suposta crise no jornalismo investigativo está sendo supervalorizado, no mínimo por duas razões. Primeiro, mesmo num mercado que cada vez se encolhe mais, jornais tradicionais como The Times e The Daily Telegraph têm publicado mais, e não menos, matérias de jornalismo investigativo. Segundo, as mudanças tecnológicas têm feito com que o jornalismo investigativo fique muito menos custoso que há pouco tempo atrás por várias razões, entre elas: (1) boa parte das “buscas” que levam a furos de jornalismo investigativo têm sido feitas à distância via Internet, e, portanto, não exigem a busca in loco; (2) a participação do cidadão através do crowdsourcing, do whistleblowing virtual e do jornalismo cidadão têm sido fundamentais em alguns dos grandes casos de sucesso do jornalismo investigativo.

Além do uso de multi-plataformas de divulgação conforme mencionado anteriormente, ao jornalista investigativo estão disponíveis ferramentas de “marketing viral” assim como de “jornalismo gonzo”, tudo isso com vistas ao objetivo maior de garantir ao cidadão o conhecimento e o acesso a informações de interesse público. Lembrando que teve que fazer uso de uma identidade “fake” num dos casos mais importantes que lhe garantiu a premiação máxima do jornalismo britânico, Gilligan confessa que o “jornalismo investigativo não pode sempre ser gentil, não pode ser sempre respeitoso, às vezes tem que usar métodos, às vezes tem que produzir resultados.”

A bem da verdade, as tecnologias digitais chegaram para mudar a cara do jornalismo investigativo, não apenas no sentido de facilitar o acesso a informações “protegidas” por entidades poderosas, mas também para garantir a proteção às fontes jornalísticas, reduzir custos de investigação e de coleta de informações, além de propiciar mais segurança e anonimato aos próprios jornalistas. Resta ao jornalista investigativo buscar as ferramentas tecnológicas mais convenientes e eficazes para levar a cabo sua missão num mundo de “liberdade de expressão em crise”, conforme a temática de abertura da Conferência Global de Jornalismo Investigativo, reunindo o 8º Congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), a 8ª Global Investigative Journalism Conference e a 5ª Conferencia Latinoamericana de Periodismo de Investigación (COLPIN), realizados no campus da PUC-Rio de 12 a 15 de Outubro de 2013.


Ruy J.G.B. de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE

Dayane Albuquerque, Mestranda, Centro de Informática da UFPE

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Precisão e simplicidade nas leis para o ciberespaço

Precisão e simplicidade nas leis para o ciberespaço

QUI, 09 DE MAIO DE 2013 16:38


Quando se trata da formalização de um sistema regulatório para o ciberespaço, como equilibrar precisão com simplicidade?

Há uma clara tendência, sobretudo nesse novo espaço virtual de convivência que denominamos de ciberespaço, em favor da busca incessante pela precisão no texto de leis e regulamentações, como observa Chris Reed, Professor do Queen Mary College, Londres, autor do livro “Making Laws for Cyberspace” (Oxford University Press, 2012). Em seu artigo “How to Make Bad Law: Lessons from Cyberspace” (The Modern Law Review, 73(6):903-932, Nov 2010), Reed defende que a percepção do suposto benefício da tão cobiçada precisão, a saber, uma maior garantia quanto ao cumprimento, pode ser ilusória. O fato concreto é que leis demasiado complexas têm sérias desvantagens, em particular, o enfraquecimento de seu efeito normativo, além de maior risco da existência de contradição e da alta frequência de revisões e de alterações posteriores.

Com efeito, a busca pela precisão e pela certeza no texto da lei, que em geral se manifesta através de obrigações exaustivamente detalhadas em termos tão objetivos quanto possível, permeia a grande parte das legislações na área da Informática e das Comunicações. Justo numa área que tem experimentado uma evolução avassaladora nos últimos tempos. Uma consequência disso tudo, segundo Reed, é a degradação na qualidade do sistema de leis, no mínimo no que diz respeito à aderência ao princípio de que as regras de um sistema de leis devem ser amplamente eficazes no que concerne à consecução de seus objetivos.

Tome-se, por exemplo, o caso da lei americana “Computer Fraud and Abuse Act” (CFAA) de 1984 (com emendas em 1986, 1989, 1994, 1996, 2001, 2002, e 2008) com base na qual a justiça mandou prender e poderia condenar o jovem ativista da cultura livre Aaron Swartz a até 35 anos de prisão e multa de mais de um milhão de dólares pelo fato de ter compartilhado artigos em domínio público distribuídos sob cobrança pela revista científica JSTOR. Deprimido com a possibilidade de ter que cumprir uma pesada condenação por um ato em prol do acesso livre à informação, o jovem de apenas 26 anos cometeu suicídio em 11 de Janeiro deste ano causando grande consternação em toda a comunidade de tecnologia da informação nos Estados Unidos e no resto do mundo.

A morte de Aaron provocou protestos e reivindicações de legisladores, acadêmicos e usuários de internet em todo o espectro político por reforma na CFAA, incluindo muitos que achavam que Aaron deveria ter sido processado, mas não sob a CFAA e não sob a ameaça de penalidades tão duras. Em 02/04/2013, um grupo de 16 representantes de entidades de defesa dos direitos civis e de algumas universidades americanas, incluindo a American Civil Liberties Union, o Center for Democracy & Technology, a Electronic Frontier Foundation, a George Washington University, o Stanford Center for Internet and Society, enviou uma carta à Câmara dos Representantes declarando-se contrários a um projeto de lei supostamente programado para ser votado ainda em Abril para alterar a CFAA aumentando as penas e ampliando o escopo da conduta punível nos termos da lei.

Tal qual escrita atualmente, a CFAA impõe responsabilidade civil e criminal pelo acesso sem autorização ou “em excesso de autorização” a um computador protegido. Segundo os signatários da carta, a expressão “excede autorização” é vaga e tanto os litigantes civis quanto o governo têm pressionado as cortes a julgar como violação da CFAA sempre que alguém usa computadores de uma maneira que não é do agrado do proprietário do sistema. Isso significa que as empresas privadas estão efetivamente escrevendo leis federais na medida em que elaboram seus “termos de serviço”. Como resultado disso, casos de violação da CFAA têm sido interpostos contra usuários que violam os termos de serviço, funcionários que violam as políticas dos seus empregadores, e clientes que violam licenças de software.

Infelizmente, alegam os signatários, a proposta em discussão é uma expansão significativa da CFAA num momento em que opinião pública está exigindo que a lei seja reduzida. A linguagem da lei reformulada seria problemática no mínimo sob os seguintes aspectos: (i) obliteraria a linha tênue entre ataques criminosos e usuários legítimos que são autorizados "a obter ou alterar a mesma informação", mas que o fariam de um modo ou com um motivo
desfavorecido pelo proprietário do servidor ou expresso em termos unilaterais de serviço ou acordos contratuais; (ii) aumentaria substancialmente as penas máximas para muitas violações para 20 anos ou mais, dando ao Ministério Público um pesado martelo para pendurar sobre indivíduos acusados de crimes de fronteira, e asseguraria que até mesmo pequenas infrações, com pouco ou nenhum dano econômico (que deveriam ser contravenções, no máximo) serão punidas como crime.
Um mês antes da carta supracitada, uma outra declaração de preocupação com o efeito negativo da CFAA sobre a inovação em tecnologia da informação foi enviada por um grupo de representantes de empresas de internet, autodenominado de “uma ampla gama de inovadores da internet”, à Câmara dos Representantes com o objetivo de apoiar os esforços liderados pela Deputada Zoe Lofgren para reformar a CFAA. Segundo eles, a questão é importante não apenas por causa da trágica morte de Aaron Swartz, mas porque a CFAA traz desestímulo à inovação e ao crescimento econômico por ameaçar os desenvolvedores e os empreendedores que criam tecnologia inovadora. Segundo seus signatários, é possível dissuadir os criminosos digitais sem criminalizar as violações contratuais inofensivas e sem impor a responsabilidade criminal a
desenvolvedores de tecnologias inovadoras.
Na busca por um equilíbrio entre precisão e simplicidade do texto da lei, tão apregoado por Chris Reed, parece emblemático o caso da CFAA. Segundo Reed, é comum haver, sobretudo quando se trata do ciberespaço, queixas de que uma lei não é suficientemente clara. E aí os legisladores se esforçam para elaborar leis altamente detalhadas. Mas aí surgem as queixas de que a lei é complexa demais para ser entendida. No final das contas, o que se deseja é um meio-termo. Portanto, uma abordagem alternativa à elaboração de leis que abordem o comportamento e as crenças humanas, ao invés de especificar o cumprimento a nível técnico, pode, segundo Reed, produzir uma lei que não é imediatamente implausível e que atende mais de perto a um teste de qualidade fundamentado nas “demandas da moralidade interna das leis” de Lon Fuller. O sacrifício da precisão excessiva e da certeza é mais do que compensado pela melhoria na capacidade dos sujeitos da lei de compreender as obrigações que lhes são impostas. Nesse caso, a expectativa é a de que o efeito normativo da lei será mais forte e que os objetivos da lei terão mais chances de serem alcançados.
Em suma, se os legisladores quiserem regular o comportamento dos cidadãos do ciberespaço em direções benéficas, a abordagem sugerida por Reed é a de se concentrar nos atores humanos, ao invés de focar nas atividades tecnológicas nas quais esses atores se engajam. E, para conseguir isso, as leis para o ciberespaço terão de: (i) identificar os comportamentos que possam surgir a partir da inovação que se deseja regular; (ii) decidir quais comportamentos devem ser incentivados e quais devem ser desestimulados; (iii) criar mecanismos para persuadir os atores humanos a se comportarem da forma desejada.



Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE





segunda-feira, 29 de abril de 2013

A definição de conteúdo digital em computação em nuvem


A definição de conteúdo digital em computação em nuvem
SEG, 29 DE ABRIL DE 2013 13:53


As novas tecnologias de comunicação digital criaram um mundo virtual sem fronteiras geopolíticas, onde é possível a disseminação e o acesso dos mais diversos bens e serviços da indústria cultural, tecnológica e da informação.

Dentre as tendências surgidas no meio tecnológico, temos a computação em nuvem, baseada na “virtualização” ou “digitalização” de recursos ou de serviços computacionais, disponíveis por meio de um provedor ou fornecedor, que podem ser utilizada por órgãos governamentais ou não governamentais, por empresas ou pessoas físicas, mediante o acesso a qualquer tempo, ou lugar, independente da localização geográfica do usuário. Daí a perspectiva de que em um futuro não muito distante a computação em nuvem funcione como uma “utilidade”, tal qual a eletricidade, a água e a telefonia.

Alguns autores entendem que as tecnologias existentes sobre as quais repousam os conceitos de computação em nuvem não são novas, tais como computação distribuída e acesso a recursos na base do pague-pelo-uso, representando tão-somente um modelo diverso de terceirização de serviços tecnológicos ou uma nova maneira de realizar negócios no ambiente virtual.

No entanto, nas palavras de John Hagel e John Seely Brown, computação em nuvem seria, “parte de uma terceira onda de disrupção tecnológica que primeiro ocorreu com o computador pessoal nos anos 1970’s” (“The disruptive architecture of the cloud,” Financial Times, Londres, 10/02/2011).

De fato, o crescimento da computação em nuvem é um dos principais avanços na história da computação. Ela tem expandido o acesso a altos recursos computacionais para todos os usuários que se utilizam das redes sociais como Facebook ou webmail, ou que compartilham fotos nos álbuns do Flickr e do Picasa. Pequenas e médias empresas hoje também desfrutam da possibilidade de ter acesso a altas capacidades de processamento até então reservadas a grandes corporações.

Todavia, na medida em que estes recursos e serviços computacionais evoluírem nesta plataforma, com o uso crescente de ‘conteúdos digitais’, surge a necessidade de uma nova camada de infraestrutura legal e comercial para solucionar os conflitos surgidos neste arcabouço de computação. Indubitavelmente, as preocupações relacionadas à proteção do consumidor e da segurança de dados, da validade dos contratos eletrônicos, da privacidade e da propriedade intelectual, não são apenas “desafios da nuvem”. Todas elas têm sido alvo de controvérsias no contexto do comércio eletrônico (e-commerce) ao menos por duas décadas. Entretanto, considerando que a computação em nuvem é um dos segmentos de maior crescimento da indústria da Tecnologia da Informação (TI), ela cria novos desafios ou no mínimo intensifica as dificuldades já existentes.

Urge observar que, a despeito da crescente importância do mercado da economia digital, em que a distribuição e o acesso ao ‘conteúdo digital’ têm se tornado um aspecto essencial da vida empresarial e do consumidor, até recentemente, a regulamentação desta matéria não despertava a atenção da maioria dos países industrializados. E embora nos últimos anos venha surgindo uma literatura acerca do ‘conteúdo digital’, permanece verossímil a observação de que na maior parte dos Estados-Membros da União Européia (UE), por exemplo, tem havido pouca ou praticamente nenhuma revisão das medidas legislativas já existentes para adequar as respectivas leis de proteção ao consumidor ao fornecimento do ‘conteúdo digital’.

No momento existe uma profunda incerteza no direito interno dos Estados-Membros da UE acerca das cláusulas dos contratos que envolvem o fornecimento e o uso de ‘conteúdo digital’. Seria o caso deste tipo de conteúdo ser considerado como serviço, como mercadoria, ou como algo sui generis? Acrescente-se que mais recentemente, os modos de acesso ao conteúdo digital envolvem, não apenas o meio tangível, como um programa de computador adquirido em CD, porém ainda a transferência (download), o streaming ou a computação em nuvem, que são meios intangíveis. Como o conteúdo digital cada vez mais se desloca para a nuvem, e, assim, deixa de ser fornecido em um meio físico, a incerteza se agrava sobremaneira.

Por tal razão, em outubro de 2011, a Comissão Européia publicou uma Proposta de Regulamentação relativa a um "direito comercial europeu comum", denominada na língua inglesa de “Common European Sales Law – CESL”. A CESL busca proporcionar um novo regime do direito contratual aplicável a todos os 27 Estados-Membros, trazendo harmonização ao direito de compra e venda na União Européia. O âmbito de aplicação material da proposta CESL inclui, contudo, apenas três tipos de contratos, a saber, compra e venda de produtos, fornecimento de conteúdos digitais e prestação de serviços relacionados a um dos dois tipos de contrato anteriores (ou a uma combinação de ambos). A expressa inclusão das normas relativas à oferta de contratos de fornecimento de ‘conteúdo digital’ representa, sem dúvida, um dos aspectos mais inovadores desta nova proposta de regulamentação.

O referido regulamento de maneira implícita observa algumas das questões de grande importância para o contínuo desenvolvimento dos serviços de nuvem e da defesa do consumidor digital na Comunidade Européia. A proposta CESL segue a abordagem de que um regime sui generis se faz necessário para os contratos de ‘conteúdo digital’. O texto deliberadamente abandona a dicotomia de categorização do conteúdo digital como “produto” versus “serviço”, ou ainda como bem “tangível” versus “intangível”, que têm estado presente nos contratos eletrônicos até o momento. Assim, afastando essas classificações estreitas e construídas para o universo dos contratos realizados com bens materiais e tangíveis, a proposta foi capaz de estender a grande maioria dos direitos e garantias aplicados aos contratos de compra e venda de produtos aos contratos de fornecimento de ‘conteúdo digital’ que venham a envolver o uso da computação em nuvem.

No entanto, a proposta CESL foi recebida com forte oposição por parte de diversos organismos profissionais no Reino Unido e de outros países na Europa. Uma objeção que parece, de fato, pertinente foi suscitada pela Law Society of England and Wales, que desafiou a aplicabilidade da CESL para alguns serviços em nuvem.

Em estudo intitulado “On the Applicability of the Common European Sales Law to some Models of Cloud Computing Services”, realizado em parceria com o Professor Chris Reed, do “Centre for Commercial Law Studies”, Queen Mary, Londres e publicado no portal da Social Science Research Network (SSRN, http://ssrn.com/abstract=2254993), defendemos a aplicabilidade da CESL a alguns serviços de nuvem quando envolve o fornecimento de ‘conteúdo digital’. Questionamos se os provedores de serviços em nuvem serão persuadidos a adotar esse instrumento opcional em suas transações em nuvem transfronteiriças. Argumentamos que a CESL será acolhida pelos provedores somente se essa escolha reduzir a incerteza de seus contratos de nuvem.

Reconhecendo que a precisão técnica é inatingível numa área de atividade que está mudando tão rapidamente, concluímos que, para que haja efetivamente a desejada redução da incerteza, alguns aspectos devem ser considerados:

(a) A proposta CESL é passível de ser aplicada apenas para alguns serviços em nuvem. O mero fornecimento de “Infraestrutura como Serviço” (IaaS) e de “Plataforma como Serviço” (PaaS) não se enquadra no escopo da CESL. Porém, ela ainda é capaz de regular muitas fontes de “Software como Serviço” (SaaS).
(b) Aquelas fontes de SaaS que permitem ao usuário armazenar, gerar, modificar ou comunicar os seus próprios conteúdos, fogem do âmbito da CESL. Em contrapartida, fontes de SaaS que concedem ao usuário acesso a conteúdo produzido por outros, e que pode ser consumido à vontade, estão nitidamente dentro da guarida da CESL. Neste particular, tal possibilidade facilita a redução da incerteza.
(c) No entanto, há um debate legítimo sobre o quanto de SaaS que provê apenas streaming de conteúdo, poderá ser inserido no escopo da CESL. Esta incerteza é definitivamente preocupante.

Não obstante todas as indicações de que o efeito da adoção da CESL tende a ser positivo entre os Estados-Membros da Comunidade Européia, nosso estudo nos permite concluir que ainda há um longo caminho a ser percorrido antes que a proposta venha a superar a incerteza que os provedores e fornecedores estão passíveis de encontrar nos contratos de serviços de computação em nuvem.



Clarice Marinho Martins de Castro, Professora, Universidade Católica de Pernambuco, e Doutoranda, Centro de Informática da UFPE
Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE