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quinta-feira, 29 de julho de 2010

A Memória na Era Digital e o Fim do Esquecimento


A Memória na Era Digital e o Fim do Esquecimento

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O fenômeno da memória perfeita é uma dessas surpresas que a tecnologia digital tem propiciado à humanidade. Não obstante seus enormes benefícios, a capacidade de armazenar quase que irrevogavelmente o passado não deixa de trazer sérias preocupações, além de conseqüências nunca dantes imaginadas. Veja-se o problema com o qual se confrontam milhões de pessoas em todo o mundo nos dias de hoje: como viver da melhor forma possível num mundo onde a internet registra tudo e não se esquece de nada.
Segundo uma pesquisa recente da Microsoft, 75 por cento dos agentes de recrutamento de pessoal e profissionais de recursos humanos nos EUA declaram que suas empresas lhes exigem que façam pesquisa online sobre os candidatos, e muitos utilizam uma ampla variedade de sítios no escrutínio dos aspirantes aos postos de trabalho, incluindo engenhos de busca, redes sociais, portais de compartilhamento de fotos e vídeos, blogs e sítios pessoais, Twitter, e portais de jogos online. Cerca de 70 por cento dos recrutadores dizem que já rejeitaram candidatos devido a informações encontradas na internet, tais como fotos e conversações em salas de chat e de discussão, além de participação em grupos controversos.
Um tanto emblemático é o caso de Andrew Feldmar, um psicoterapeuta canadense de 66 anos de idade, residente em Vancouver. Em 2006, a caminho do aeroporto de Seattle para buscar um amigo, Feldmar tentou atravessar a fronteira com os Estados Unidos tal qual havia feito mais de uma centena de vezes. Dessa vez um guarda de fronteira fez uma busca por seu nome no Google, e encontrou um artigo que Feldmar havia escrito em 2001 para uma revista interdisciplinar, no qual mencionava que tinha tomado LSD nos anos 1960’s. Resultado: após ser detido, interrogado e obrigado a assinar uma declaração de que havia usado drogas 40 anos atrás, foi impedido de entrar nos Estados Unidos.
Não menos constrangedor é o caso de Stacy Snyder, professora secundária americana de 25 anos de idade, atuando numa cidade da Pennsylvania. A simples disponibilização em sua página na rede social MySpace de uma foto sua com um copo de bebida nas mãos e usando um boné com a inscrição “Pirata Bêbada”, levou Stacy a ser advertida por seu diretor por “falta de profissionalismo”, além de impedida de receber o diploma de graduação que estava prestes a receber de sua Universidade, sob a alegação de que ela estava promovendo a bebida alcoólica e dando um mau exemplo às crianças da escola em que ensinava. Reivindicando seus direitos à liberdade de expressão, Stacy acionou judicialmente a Universidade, mas em 2008 uma corte federal rejeitou seu pedido dizendo que, em razão do fato de que Stacy era uma pessoa pública cuja foto não dizia respeito a questões de interesse público, sua auto-denominação “Pirata Bêbada” não estaria protegida pelo direito de livre expressão.
É fato que a escrita tornou possível ao ser humano a memorização através de gerações e à revelia do tempo. E, curiosamente, o advento da memória digital e das telecomunicações em escala global tem exercido uma pressão inusitada sobre nossa capacidade natural de esquecer, pois o passado está sempre presente e acessível a um clique de mouse. Se, por um lado, é cada vez mais fácil e mais barato coletar e armazenar informações sobre todos nós e nosso comportamento, por outro lado, aos indivíduos cabe a perda galopante e assustadora do controle sobre aquelas informações: uma vez que se disponibiliza algo na internet, perde-se completamente o controle sobre onde e quando tais informações vão reaparecer, quem terá acesso a elas, e em que contexto serão utilizadas. E para piorar ainda mais, nem sempre o que está na internet foi deliberadamente disponibilizado pelo sujeito associado àquela informação.
Em seu livro recentemente publicado pela Princeton University Press, “Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age” (Setembro 2009), Viktor Mayer-Schönberger, diretor do “Information + Innovation Policy Research Centre” da National University of Singapore, explora como a incapacidade de esquecer o passado já está mudando a sociedade, podendo vir a modificar irrevogavelmente uma das características humanas de maior poder no crescimento pessoal e social: o poder do esquecer. Mayer-Schönberger faz um histórico dos esforços da humanidade para preservar informações, e a correspondente importância do fazer com que algumas dessas informações sejam esquecidas, alertando para a necessidade de contrabalançar essa tendência para o desequilíbrio entre o lembrar e o esquecer antes que conseqüências desagradáveis se materializem. O esquecer, conta ele, tem tido fundamental importância para a humanidade, desde a capacidade de tomarmos decisões não sobrecarregadas por lembranças do passado, até a possibilidade de segundas chances.
Entre as repercussões de tal desequilíbrio está o fato de que os registros digitais abrangentes, duráveis, e acessíveis de nosso passado podem impactar diretamente a forma como nos conduzimos e tomamos decisões no presente. Sabendo que o que está na internet não se pode apagar, a tendência é de um comportamento guiado pela permanente autocensura: o comportamento hoje será guiado pelos possíveis futuros usos e interpretações do que ficará registrado. E a mera existência desses rastros digitais, por assim dizer, pode fazer da internet um verdadeiro “pan-óptico” de vigilância digital levando a efeitos inibidores do comportamento humano. O pan-óptico é essencialmente uma idéia antiga, inventada pelo sociólogo britânico Jeremy Bentham em 1785: uma prisão na qual os prisioneiros não sabem quando os guardas os estão observando, por isso têm que assumir que estão sendo observados o tempo todo. Igualmente, dado que não sabemos quem está nos observando na internet, temos que nos comportar o tempo todo com base no menor denominador comum.
Como diz Mayer-Schönberger, a natureza sabiamente nos impõe limites à capacidade de memorização, de modo que o esquecimento serve no mínimo ao propósito de limpeza, de reciclagem de nossos pensamentos e do nosso raciocínio. A bem da verdade, insiste o autor, desde o início dos tempos que o esquecer tem sido a norma, enquanto que o lembrar faz parte da exceção. Com a tecnologia digital e as redes globais esses papéis parecem ter se invertido: com a ajuda da tecnologia de armazenamento de informações, o esquecer tem se tornado cada vez mais a exceção enquanto que o lembrar tem sido a norma. Para melhor ilustrar o valor do esquecer, Mayer-Schönberger faz referência (e reverência) a um conto do escritor argentino Jorge Luiz Borges intitulado “Funes El Memorioso” (1944), no qual um jovem detentor de uma memória pródiga, mas que perdeu sua capacidade de esquecer após um acidente, se torna incapaz de converter as informações em conhecimento, e portanto incapaz de crescer em sabedoria. “Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos”, escreveu Borges.
O fato é que a tecnologia que está facilitando o fim do esquecimento, desde a digitalização, passando pela queda no custo de memória e de recuperação da informação, pelo acesso global, até o contínuo aumento do poder do software, representa o perigo da memória digital perpétua, seja ela constituída de informação “expirada”, seja informação desatualizada e removida do contexto, ou até mesmo fotos comprometedoras que a Web não nos deixa esquecer. Com toda a sua autoridade e experiência de jurista, Mayer-Schönberger se esforça para demonstrar que os direitos à privacidade da informação não são suficientes para resolver esse problema, e aí propõe uma solução simples e um tanto quanto inusitada: associar uma data de expiração a toda informação digital.
Como diz Jeffrey Rosen em resenha do livro de Mayer-Schönberger publicada recentemente no New York Times (“The Web Means the End of Forgetting”, 19/07/10), supõe-se que vivemos numa época por demais permissiva, com intermináveis segundas chances. Porém o fato é que para muita gente o banco de memória permanente da Web cada vez significa que não existe a segunda chance: não há como escapar de um deslize cometido num passado digital distante. Nos dias de hoje, o que fizemos de pior é muito frequentemente a primeira coisa que todo mundo sabe sobre nós.
Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE

segunda-feira, 19 de julho de 2010

O Uso Significativo do Prontuário Eletrônico de Saúde e o Acesso à Informação


O Uso Significativo do Prontuário Eletrônico de Saúde e o Acesso à Informação

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Todos que vivemos a experiência de acompanhar um ente querido em sua internação em um hospital sabemos o quão angustiante é a falta de informações sobre o diagnóstico, os próximos procedimentos, a evolução do quadro de saúde do paciente, a próxima visita do médico ao quarto, e até mesmo acerca do risco a que está submetido aquele enfermo por cuja recuperação desesperadamente torcemos. Não é difícil imaginar o enorme benefício que traria a todos os envolvidos a disponibilização de um serviço de acompanhamento eletrônico, alimentado pela instituição hospitalar e/ou pelos médicos e enfermeiros, ainda que parcial e seletivo no tipo de informação a disponibilizar. O acesso ao prontuário médico do paciente poderia significar, inclusive, a diferença entre a vida e a morte.
Nesse ponto, a estória da jovem viúva estadunidense Regina Holliday é um tanto emblemática. Em artigo intitulado “Thoughts on Medicine and Social Media” publicado em 23/10/09 em seu blog (reginaholliday.blogspot.com) Holiday, que viu seu marido falecer aos 39 anos de um câncer renal perfeitamente curável caso houvesse sido detectado em estágio inicial, relata o que apresentou em um encontro sobre “Saúde 2.0” (saúde na era da internet interativa): “Descreví o horror de ter tido meu marido diagnosticado com câncer e de não ter sido informada sobre o que estava acontecendo. Falei sobre a luta que empreendemos para obter uma cópia do seu prontuário médico. Contei e recontei numerosas vezes que tinha usado as informações em seu prontuário para melhorar os cuidados a ele prestados. O prontuário ficava ali na mesa em um encadernador espesso de três polegadas. Havia silêncio na sala. Não estávamos mais falando abstratamente sobre pacientes. Eles me pediram para me concentrar no que foi a pior coisa que tinha acontecido durante toda essa tragédia. Eu disse a eles que a pior coisa que vivenciamos foi a falta de acesso aos dados de meu marido.” Mais tarde em seu depoimento Holliday chega a dizer que, enquanto esteve acompanhando seu marido no hospital, foi informada por membros dos serviços de prontuário médico que se desejasse uma cópia do prontuário médico do marido teria que pagar 73 centavos por página e esperar 21 dias para receber a documentação.
Esta semana o “U.S. Department of Health and Human Services” (HHS), através da Secretária Kathleen Sebelius, anunciou o que foi definido como sendo o conjunto de regras para, segundo suas próprias palavras, melhorar a saúde dos americanos, aumentar a segurança e reduzir os custos de assistência à saúde através do uso expandido do ‘prontuário médico de saúde’ – em inglês, ‘eletronic health record’, abrev. EHR.  Conforme o comunicado do HHS, o anúncio marca a conclusão de diversos estágios na preparação do terreno para a implementação do programa de pagamento de incentivos. Sob o regime da nova lei de assistência à saúde, o “Health Information Technology for Economic and Clinical Health (HITECH) Act” de 2009, profissionais de assistência à saude e hospitais elegíveis podem se candidatar a receber pagamentos de incentivos provenientes dos programas governamentais Medicare e Medicaid quando adotarem a tecnologia de EHR certificado, e usá-la para atingir determinados objetivos. Uma das regras anunciadas na ocasião define os objetivos do chamado “uso significativo” que os provedores de assistência médica devem atingir para se qualificarem para receber os pagamentos de bônus, enquanto que a outra regra identifica as capacidades técnicas exigidas para a tecnologia de EHR certificado. Entre outras coisas, as novas regras de “uso significativo” tratam de regulamentar o quanto as instituições de assistência médica poderão cobrar, e o período de tempo no qual as informações devem ser disponibilizadas ao paciente.
Em artigo publicado em 23/07/10 no New England Journal of Medicine sob o título ‘The “Meaningful Use” Regulation for Electronic Health Records’, David Blumenthal e Marilyn Tavenner afirmam que o amplo uso de prontuários médicos de saúde (EHR’s) nos Estados Unidos é inevitável, pois o EHR propiciará melhoras nas decisões dos provedores de assistência médica e nos resultados nos pacientes. Lembrando que, embora inevitável, a incorporação da tecnologia de prontuários médicos de saúde na prática cotidiana não será fácil, Blumenthal – que foi nomeado por Obama em 2009 “coordenador nacional de tecnologia da informação em saúde” – enfatiza que o programa prevê um total de 27 bilhões de dólares em prêmios a serem pagos nos próximos 10 anos.
Um dos princípios básicos por trás das novas regras é que, para ser útil, os dados têm que fluir. No caso dos dados relativos ao paciente, estes devem estar: (i) disponíveis para os próprios pacientes; (ii) disponíveis para outros provedores de serviços de saúde, de modo que eles possam coordenar a assistência médica; (iii) disponíveis para farmácias para que possam lidar com as receitas médicas eletrônicas; e (iv) disponíveis para agências governamentais para garantir a saúde pública, regular as instituições, e dar suporte à pesquisa pública para melhores curas.
Concretamente, as regras atuais de “uso significativo” buscam um equilíbrio entre o reconhecer a urgência de se adotar EHR’s para melhorar o sistema de saúde e o se dar conta dos desafios que a adoção deverá oferecer aos provedores de assistência à saúde. A idéia é que a regulação tem que ser ao mesmo tempo ambiciosa e atingível. “Como uma escada rolante, o HITECH tenta fazer subir o sistema de saúde em direção a uma qualidade e a uma eficácia melhoradas, mas a velocidade de subida deve ser calibrada para refletir as capacidades dos provedores que enfrentam uma variedade de desafios do mundo-real, e a maturidade da própria tecnologia.
Paralelamente, o HHS vem desenvolvendo um sistema para permitir que organizações independentes possam certificar os sistemas de EHR’s. Em conjunto com o anúncio das regras de “uso significativo”, foi divulgado o conjunto inicial de padrões, especificações de implementação, e critérios de certificação para a tecnologia de EHR. Digno de menção o incentivo explícito à submissão feito especificamente aos desenvolvedores de sistemas de código aberto.
Entre os principais objetivos das novas regras está o de incentivar o uso de diversos aplicativos de software que permitam explorar o verdadeiro potencial dos EHR’s na melhora da qualidade, da segurança, e da eficiência da assistência médica. Em particular, ajudar o médico na tomada de decisão, minimizando inclusive as chances de ocorrência de erros que podem evitados, tais como a prescrição de medicamentos incompatíveis com a condição do paciente. E para se candidatar ao pagamento dos incentivos, os médicos devem começar empregando tais ferramentas de suporte à decisão, bem como usar os sistemas de EHR para registrar todas as suas prescrições, sobretudo as de medicamentos. No entanto, somente quando também os provedores de serviços (hospitais, clínicas) passarem a entrar com seus registros no EHR do paciente, o sistema poderá efetivamente melhorar a qualidade da assistência. E, naturalmente, para começar a estender os benefícios dos EHR’s aos pacientes, as exigências de uso significativo deverão incluir o fornecimento de versões eletrônicas de seus prontuários médicos aos pacientes e seus familiares ou responsáveis.
 
Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE