Ruy José Guerra Barretto de Queiroz
Professor Associado, Centro de Informática – UFPE
ruy@cin.ufpe.br
Não é fácil imaginar valores mais fundamentais na sociedade moderna do que a liberdade e a privacidade do indivíduo. É notório que a evolução das tecnologias da informação e das telecomunicações clama por uma reflexão sobre o que deve ser feito para que tais valores sejam preservados. A digitalização do mundo tem feito da privacidade natural das conversações interpessoais uma coisa do passado, e tem permitido a espionagem numa escala global nunca dantes verificada. Em Privacy on the Line (2ª.ed., 2007, MIT Press), Whitfield Diffie e Susan Landau chamam a atenção para esse aspecto da cidadania nos dias de hoje: “seria difícil encontrar um tema mais fundamental no mundo contemporâneo do que a migração da atividade humana do contato físico, face-a-face, para o mundo virtual das telecomunicações eletrônicas (e digitais).” E vão ao âmago da questão ao convidar o leitor à reflexão sobre qual o efeito que essa transformação terá sobre a privacidade e a segurança do indivíduo. Uma pergunta fica no ar: qual seria a definição mais apropriada de “expectativa razoável de privacidade” quando se trata do chamado ciberespaço?
O fato é que o caso recente do 9th Circuit Court of Appeals Chief Judge Alex Kozinski, publicado em 12/06/08 no Los Angeles Times, dá uma idéia de que tipos de situações inusitadas com que pode se deparar o cidadão: à frente de um processo movido contra o cineasta Ira Isaacs por violação de uma lei federal sobre obscenidade por vender e distribuir DVDs que exibiam práticas sexuais de bestialismo e coprofagia, entre outras, Kozinski teve que suspender o julgamento após admitir ter disponibilizado em seu portal imagens com conteúdo sexual semelhante ao material objeto do processo. Embora tendo Kozinski assumido total responsabilidade pelo material disponibilizado, seu filho adulto Yale veio posteriormente a público tomar para si a culpa. Conforme a Associated Press, a iniciativa da ampla divulgação das imagens foi reivindicada por Cyrus Sanai, um advogado de Beverly Hills que tem tido longas disputas com o 9th Circuit. No blog de Lawrence Lessig (lessig.org) o próprio Sanai assume que “não estava procurando nenhuma sujeira no portal de Kozinski”, mas que esteve sim utilizando a técnica de truncar endereços de URL para descobrir pastas e arquivos disponibilizados mas não explicitamente apontados no portal de Kozinski , motivado sobretudo pela “má-conduta” do Juiz quando, em 2005, violou a ética e o segredo de justiça ao escrever sobre o caso de Sanai que ainda transitava no 9th Circuit (admitido pelo Juiz em contato por e-mail), e disponibilizou material referente ao caso no seu portal (desconsiderado com base na inexistência de alex.kozinski.com). Kozinski tem dito que: (1) não havia nada de sexualmente obsceno, mas apenas “engraçado” e “parte da vida” no material (havia uma imagem de mulheres nuas em posição “de quatro” e pintadas como vaca, além de um video clip, já no YouTube, mostrando um jumento excitado querendo estuprar um homem seminu fugindo do animal e querendo levantar as calças); (2) o portal era para seu uso privado, e que não imaginava que os arquivos e pastas (que, aliás incluía músicas em MP3 protegidas por direitos autorais) poderiam ser acessados amplamente. Apesar da enorme repercussão e controvérsia, Kozinski, que aliás figura há algum tempo na lista dos candidatos à US Supreme Court, não parece estar tecnicamente fora-da-lei: muitos argumentam que as imagens, embora grosseiras, não podem ser classificadas como pornografia; e um “servidor FTP não-indexado” não é portal público, conforme julgou o US Federal Circuit em caso anterior (2005) não-relacionado. Esse caso deve ter deixado em alerta os que inadvertidamente ou ingenuamente disponibilizam informações sensíveis no ciberespaço. A analogia com a atitude de deixar a porta de sua casa aberta pode trazer surpresas desagradáveis. O ciberespaço é virtual, e as regras de convivência ali ainda estão na primeira infância.
Jornal do Commercio (Recife), Seção de Opinião, 26/6/2008
Nenhum comentário:
Postar um comentário